CRÔNICA. Orlando Fonseca e as fantasias de Noel
Fantasias e disfarces
Por ORLANDO FONSECA (*)
No divã do psicanalista:
– Doutor, acho que perdi a minha identidade…
– Usa o CPF…
– Como assim, Doutor? Tô falando sério.
– Desculpe, foi apenas um chiste… um ato falho. Não se repetirá. Prossiga.
– De uns tempos para cá, a barba… ela me incomoda.
– Você deve considerar que ficou conhecido assim. É quase uma unanimidade: você não seria você imberbe; é o barbudo mais conhecido em todo o planeta. E agora voltou a ser moda.
– Mas por que eu tenho de usar barba?
– Desculpe, mas é assim. O que vão achar se, de repente, você aparece sem ela, faz parte da sua identidade.
– Esse é o ponto. Voltamos ao início da conversa. Em pleno século XXI e uma pessoa tem de repetir coisas porque os outros querem.
– Meu caro, você deve levar em consideração que “os outros” a que você se refere constituem a humanidade. E hoje em dia quase que a essência não tem importância, o que vale mais é aparência.
– Mas é isso, eu não quero parecer… muito menos aparecer.
– Tenho que concordar com você: não deve ser fácil ficar se escondendo o tempo todo, aparecer uma vez por ano…
– Não me agrada a ideia de invadir a vida das pessoas, e…
– Desculpe a indiscrição, mas invadir é uma força de expressão, afinal, faz parte do mito quer queira ou não, causar medo, entrar sem aviso…
– Temor infantil… o ser humano evolui, mas conserva ideias arcaicas.
– Bem, meu caro, embora haja uma mal-estar na civilização, é assim que ela vem se afirmando por séculos. O que antes podia ser honra, hoje é marketing. Você devia mesmo é cuidar de sua forma física.
– É o que eu mais faço, as pessoas é que inventam coisas a meu respeito e me transformam em lenda. Mas isso é o de menos. Eu também estou muito incomodado com essa obsessão pelo vermelho.
– Alto lá: essa é a cor preferencial das figuras de sua estirpe.
– E as bombachas? E essas botas, que eu não consigo tirar nem quando vou dormir. Até parece coisa de gaúcho. Tudo parece um disfarce; é como se eu quisesse me afirmar numa coisa que não existe. Eu sou quase um monstro: as crianças vivem um dilema de gostarem de mim, e se assustarem comigo. E eu gosto tanto delas, tenho de disfarçar isso, hoje em dia, pra não ser acusado, injustamente, de pedófilo.
– Só me diz uma coisa: você está vestido desse jeito, não é por causa do Natal, você é assim… você é de verdade o…
– Quer saber, doutor, eu não aguento mais ser o Papai Noel. Estou de saco cheio!!!
– Desculpe, mais uma vez, mas, nesse caso, me parece que é natural, afinal…
– Ah, o senhor também, Doutor?
– Foi outro chiste… mas isso me acontece quase sem controle. É uma psicopatologia do cotidiano, entende? Então você é o verdadeiro Papai Noel?
– Eis o problema, e esta é a parte mais séria de tudo: eu não existo. Eu sou uma fraude. Até as crianças já não acreditam em mim.
– Não! Fraude sou eu, e existo. Penso, ou melhor, desejo, logo existo, mas sou uma fraude.
– Doutor não diga uma coisa dessas. O senhor está aí, é respeitado.
– Olha bem pra mim… não tá me reconhecendo?
– Não sei… este cavanhaque, os óculos de aros escuros… Este charuto, empestando a sala… desculpe a franqueza, mas…
– Sim… não lembra ninguém? Você aí no divã… eu aqui.
– É, o Doutor se parece muito com aquele ali do retrato.
– Isso mesmo… de uma coisa você não está tão mal, das vistas.
– Não vai me dizer que o doutor é neto do…
– Neto coisa nenhuma. Sou ele mesmo: Freud.
– Freud??? Eu não acredito!
– Tá vendo… é o que eu ouço todo dia. Ninguém mais acredita em mim. Virei uma fraude, que é um trocadilho infame com o meu verdadeiro nome, mas fazer o quê? Tive de colocar um outro nome na tabuleta.
– Mas eu achava que o Freud, quer dizer, que o Ddoutor já tinha… batido com a caçuleta.
– E eu achava que, digamos, uma pessoa como o senhor, seria uma forma arcaica da relação conflitada com o pai… que você não existia no consciente. Por isso, até podia acreditar em mim. Minha mãezinha, inclusive, insistia para que eu acreditasse em você. Mas eu, um ingrato, nunca fiz a vontade dela. Agora eu posso sentir o seu drama.
– Vamos fazer um pacto, então, pra que o senhor não acabe chorando, Doutor. Até porque a minha hora já está acabando. Eu finjo que acredito no senhor, e o senhor finge que acredita em mim. Afinal é Natal mesmo, mais uns dias e tudo isso acaba em champanhe. Combinado?
– Combinado.
– Falando nisso, o que é mesmo que o doutor quer ganhar no Natal?
– Noel…
– Desculpe, doutor, foi apenas um chiste.
(Texto publicado originalmente na Revista Garganta do Diabo)
(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.
OBSERVAÇÃO DO EDITOR: Crédito da foto: Divulgação
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