Claudemir Pereira

CRÔNICA. Orlando Fonseca e as fantasias de Noel

Fantasias e disfarces

Por ORLANDO FONSECA (*)

No divã do psicanalista:

– Doutor, acho que perdi a minha identidade…

– Usa o CPF…

– Como assim, Doutor? Tô falando sério.

– Desculpe, foi apenas um chiste… um ato falho. Não se repetirá. Prossiga.

– De uns tempos para cá, a barba… ela me incomoda.

– Você deve considerar que ficou conhecido assim. É quase uma unanimidade: você não seria você imberbe; é o barbudo mais conhecido em todo o planeta. E agora voltou a ser moda.

– Mas por que eu tenho de usar barba?

– Desculpe, mas é assim. O que vão achar se, de repente, você aparece sem ela, faz parte da sua identidade.

– Esse é o ponto. Voltamos ao início da conversa. Em pleno século XXI e uma pessoa tem de repetir coisas porque os outros querem.

– Meu caro, você deve levar em consideração que “os outros” a que você se refere constituem a humanidade. E hoje em dia quase que a essência não tem importância, o que vale mais é aparência.

– Mas é isso, eu não quero parecer… muito menos aparecer.

– Tenho que concordar com você: não deve ser fácil ficar se escondendo o tempo todo, aparecer uma vez por ano…

– Não me agrada a ideia de invadir a vida das pessoas, e…

– Desculpe a indiscrição, mas invadir é uma força de expressão, afinal, faz parte do mito quer queira ou não, causar medo, entrar sem aviso…

– Temor infantil… o ser humano evolui, mas conserva ideias arcaicas.

– Bem, meu caro, embora haja uma mal-estar na civilização, é assim que ela vem se afirmando por séculos. O que antes podia ser honra, hoje é marketing. Você devia mesmo é cuidar de sua forma física.

– É o que eu mais faço, as pessoas é que inventam coisas a meu respeito e me transformam em lenda. Mas isso é o de menos. Eu também estou muito incomodado com essa obsessão pelo vermelho.

– Alto lá: essa é a cor preferencial das figuras de sua estirpe.

– E as bombachas? E essas botas, que eu não consigo tirar nem quando vou dormir. Até parece coisa de gaúcho. Tudo parece um disfarce; é como se eu quisesse me afirmar numa coisa que não existe. Eu sou quase um monstro: as crianças vivem um dilema de gostarem de mim, e se assustarem comigo. E eu gosto tanto delas, tenho de disfarçar isso, hoje em dia, pra não ser acusado, injustamente, de pedófilo.

– Só me diz uma coisa: você está vestido desse jeito, não é por causa do Natal, você é assim… você é de verdade o…

– Quer saber, doutor, eu não aguento mais ser o Papai Noel. Estou de saco cheio!!!

– Desculpe, mais uma vez, mas, nesse caso, me parece que é natural, afinal…

– Ah, o senhor também, Doutor?

– Foi outro chiste… mas isso me acontece quase sem controle. É uma psicopatologia do cotidiano, entende? Então você é o verdadeiro Papai Noel?

– Eis o problema, e esta é a parte mais séria de tudo: eu não existo. Eu sou uma fraude. Até as crianças já não acreditam em mim.

– Não! Fraude sou eu, e existo. Penso, ou melhor, desejo, logo existo, mas sou uma fraude.

– Doutor não diga uma coisa dessas. O senhor está aí, é respeitado.

– Olha bem pra mim… não tá me reconhecendo?

– Não sei… este cavanhaque, os óculos de aros escuros… Este charuto, empestando a sala… desculpe a franqueza, mas…

– Sim… não lembra ninguém? Você aí no divã… eu aqui.

– É, o Doutor se parece muito com aquele ali do retrato.

– Isso mesmo… de uma coisa você não está tão mal, das vistas.

– Não vai me dizer que o doutor é neto do…

– Neto coisa nenhuma. Sou ele mesmo: Freud.

– Freud??? Eu não acredito!

– Tá vendo… é o que eu ouço todo dia. Ninguém mais acredita em mim. Virei uma fraude, que é um trocadilho infame com o meu verdadeiro nome, mas fazer o quê? Tive de colocar um outro nome na tabuleta.

– Mas eu achava que o Freud, quer dizer, que o Ddoutor já tinha… batido com a caçuleta.

– E eu achava que, digamos, uma pessoa como o senhor, seria uma forma arcaica da relação conflitada com o pai… que você não existia no consciente. Por isso, até podia acreditar em mim. Minha mãezinha, inclusive, insistia para que eu acreditasse em você. Mas eu, um ingrato, nunca fiz a vontade dela. Agora eu posso sentir o seu drama.

– Vamos fazer um pacto, então, pra que o senhor não acabe chorando, Doutor. Até porque a minha hora já está acabando. Eu finjo que acredito no senhor, e o senhor finge que acredita em mim. Afinal é Natal mesmo, mais uns dias e tudo isso acaba em champanhe. Combinado?

– Combinado.

– Falando nisso, o que é mesmo que o doutor quer ganhar no Natal?

– Noel…

– Desculpe, doutor, foi apenas um chiste.

(Texto publicado originalmente na Revista Garganta do Diabo)

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

OBSERVAÇÃO DO EDITOR: Crédito da foto: Divulgação

Artigos relacionados

ATENÇÃO


1) Sua opinião é importante. Opine! Mas, atenção: respeite as opiniões dos outros, quaisquer que sejam.

2) Fique no tema proposto pelo post, e argumente em torno dele.

3) Ofensas são terminantemente proibidas. Inclusive em relação aos autores do texto comentado, o que inclui o editor.

4) Não se utilize de letras maiúsculas (CAIXA ALTA). No mundo virtual, isso é grito. E grito não é argumento. Nunca.

5) Não esqueça: você tem responsabilidade legal pelo que escrever. Mesmo anônimo (o que o editor aceita), seu IP é identificado. E, portanto, uma ordem JUDICIAL pode obrigar o editor a divulgá-lo. Assim, comentários considerados inadequados serão vetados.


OBSERVAÇÃO FINAL:


A CP & S Comunicações Ltda é a proprietária do site. É uma empresa privada. Não é, portanto, concessão pública e, assim, tem direito legal e absoluto para aceitar ou rejeitar comentários.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo