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ARTIGO. Débora Dias, assassinato de trans e as leis imperfeitas. Há, porém, uma certeza: é crime de ódio!

A vulnerabilidade das mulheres transgênero e a

pergunta: podem ou não ser vítimas de feminicídio?

Por DÉBORA DIAS (*)

Em quatro meses do ano passado três mulheres transgênero e mais uma agora em 2020 em Dilermando de Aguiar foram assassinadas. A situação é preocupante, todavia  não vamos falar, nesse pequeno ensaio, da motivação dos crimes ocorridos, mas discutir um pouco sobre a situação de vulnerabilidade em que vive a grande maioria da população transgênero, face às atividades que desenvolvem devido às poucas oportunidades que têm e em que situações jurídicas poderiam (ou não) ser pensadas suas mortes  como feminicídios.

A nossa sociedade, de um modo geral, é hipócrita. E o preconceito, de regra, é muito mais social do que qualquer outro. Quando falamos em prostituição, ou autoprostituição, que não é crime, o modo de olhar é díspar, ao falar de “prostitutas de rua” e “acompanhantes”, ou ainda, “garotas de programa de luxo”. A forma visceral que se crítica é muito maior em relação às prostitutas que vivem na rua.

Para mim, soa como absoluto falso moralismo, fomentador da hipocrisia social. Bem, mesmo assim, cabe a discussão, que a população LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexo), assim como os heterosexuais que vivem da prostituição, por muitas vezes não lhes foi dada outra opção de sobrevivência, ainda mais, pode não se tratar de uma escolha. Muitas dessas pessoas quando manifestam sua identidade de gênero diversa da do sexo biológico, perante a família não são aceitas, são expulsas de casa. E, mesmo sendo uma escolha, essa deve ser respeitada.

Ainda, a população LGBTI que vive na noite, da prostituição, encontra-se em uma situação de extrema vulnerabilidade, sujeita a muitas formas de violência: psicológica, física e sexual. A situação per si é violentadora. E, poderíamos ser ainda mais específicos, essas pessoas, sofrem com um preconceito a mais, a transfobia  (preconceito, ódio, discriminação em relação a pessoas transgênero). Muitos dos próprios “clientes”, que pagam por seus serviços sexuais, têm graves problemas de aceitação da própria sexualidade, fazendo com que também tenham ódio dessas profissionais do sexo. A análise é complexa e caberia um debate mais aprofundado com profissionais da área da psicologia, o que não pretendemos aqui. Vamos adiante.

Em nosso município, a morte da transgênero Verônica Oliveira, assassinada no dia 12/12/19, causou comoção, principalmente às pessoas que conheceram a vítima, por ser ela pessoa de extrema boa índole, preocupada com os direitos da comunidade LGBTQI  e também das pessoas carentes, principalmente do Bairro Urlândia, local aonde ela promovia ações sociais. Enfim, Verônica era um ser humano do bem, uma pessoa que vai deixar saudades e fazer falta em nossa sociedade.

Por outro lado, temos o debate jurídico sobre se as transexuais serem ou não abrangidas pela qualificadora do feminicídio, iniciou até mesmo antes da lei ser promulgada, na verdade, no projeto de lei  era incluído o termo “gênero”, o qual devido à bancada religiosa foi retirado e inseriu-se “sexo feminino”, deixando claro que aí estariam excluídas transexuais e travestis, já que sexo feminino, nos reporta ao sexo biológico. Bem, dessa forma, as pessoas questionam por que se aplica a Lei Maria da Penha às mulheres trans e não se aplica a qualificadora do feminicídio.

Inicialmente, temos que considerar que a Lei Maria da Penha é explícita quando fala em “violência de gênero”, afirma que toda violência contra mulher baseada em gênero é abrangida pela lei, não refere, em nenhum momento, em sexo feminino. Dessa forma, abarca a lei todas as mulheres, inclusive as transexuais femininas, as quais têm identificação de gênero feminino.

Nesse sentido, o entendimento é pacífico em nossos tribunais. Por sua vez, a qualificadora do feminicído, conforme a lei, é aplicável quando o homicídio ocorrer contra a mulher por condições do sexo feminino, sendo em duas situações: em caso de violência doméstica (conceito do artigo 5º da Lei Maria da Penha) e quando há menosprezo ou discriminação à condição da mulher.

Neste último caso, no meu entendimento, poderia ser encaixada a situação da morte de transexuais que são mortas pelo sentimento de preconceito, ódio, discriminação, nos chamados “crimes de ódio”. Entretanto, os juristas fundamentam que  as referidas “condições do sexo feminino” são condições objetivas, referem-se ao sexo biológico. A lei é extremamente limitadora.

Perpetradas, rapidamente, essas considerações, não podemos deixar de lembrar que as decisões dos tribunais são construções jurídicas.  Bem recentemente tivemos uma decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, em que foram denunciados dois homens por tentativa de feminicídio de uma mulher transgênero, entretanto, nesse caso em particular, verifica-se que há uma retificação do registro civil dessa vítima para o sexo feminino.

O Direito evolui conforme a sociedade. Bem, pelo menos é isso que ouvimos nos bancos da academia dos cursos de Direito. Ainda, dentro dessa reflexão, eu não tenho dúvidas de que a lei é limitadora e terá que mudar para abarcar os casos de mortes de mulheres trans em razão de gênero, de discriminação, de preconceito, de ódio ou mesmo de violência doméstica. Vamos lutar para essa transformação.

(*) Débora Dias é a Delegada da Delegacia de Proteção ao Idoso e Combate à Intolerância (DPICoi), após ter ocupado a Diretoria de Relações Institucionais, junto à Chefia de Polícia do RS. Antes, durante 18 anos, foi titular da DP da Mulher em Santa Maria. É formada em Direito pela Universidade de Passo Fundo, especialista em Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes, Ciências Criminais e Segurança Pública e Direitos Humanos e mestranda e doutoranda pela Antônoma de Lisboa (UAL), em Portugal.

OBSERVAÇÃO DO EDITOR: a foto que ilustra este artigo é de Verônica Oliveira, assassinada em 12 de dezembro. Trata-se de uma reprodução das redes sociais.

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2 Comentários

  1. Bla.Bla.Bla.
    Crime é crime. Matar outro ser humano, por qualquer motivo, merece pena igual.
    Não há motivação maior ou mais forte.
    Nenhuma vida vale mais para que seu caso mereça mais atenção.
    A morte de um homem branco, hetero com bom salário merece a mesma atenção.
    Chega de segregação midiática.

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