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HISTÓRIA. Conheça “Juca Tigre”, um gabrielense e coronel maragato que é lenda da Revolução de 1893

Com o seu Estado Maior, Juca Tigre, gabrielense, federalista de primeira hora e uma lenda rio-grandense na Revolução de 1893

Um maragato de corpo e alma

Por RICARDO RITZEL (*)

Na Revolução de 1893, a tropa maragata era formada, em sua maioria, por peões e agregados das grandes estâncias gaúchas e uruguaias. Todos exímios cavaleiros, praticamente criados em lombo de cavalo e com uma maestria fora do comum no manejo de lâminas.

Afinal, a criação extensiva de gado era a primeira profissão deste pessoal e essas duas qualidades, imprescindíveis para atividade, eram passadas de pai para filho, aprimoradas e estimuladas ao máximo nas grandes planícies da América Meridional. Uma arte.

O outro trabalho era a guerra.

E os requisitos exigidos para tal empreitada eram os mesmos do dia a dia daquela gauchada, assim como as condições e ferramentas de trabalho. Algumas necessitavam apenas de pequenas modificações de finalidade e uso. Como a tesoura de tosquia que, depois de separada, amarrada a um bom pau de taquara e uma bandeirola colorada na ponta, se transformava em duas reluzentes lanças revolucionárias.

As outras ferramentas que tinham, ou armas, conforme a finalidade e uso, eram facão, adaga, faca, revólver, velhos fuzis da Guerra do Paraguai e alguns bacamartes cuspidores de pedras, pregos e areia que foram guardados por gerações.

Depois, já com a revolução espraiada pela região da Campanha e Missões do Rio Grande do Sul, outros tipos começaram a chegar e se alistar, ao natural, nas fileiras rebeldes.

Primeiro, vieram os pequenos proprietários engolidos pelas grandes estâncias devido à desvalorização da carne, do charque e do couro gaúcho. Junto, os empregados demitidos das estâncias e fazendas por absoluta falta de trabalho.

Depois, os que tinham serviços ocasionais, como os domadores e os tropeiros, assim como os carreteiros que viram a recém-implantada ferrovia tomar quase todas suas rotas e mercadorias. Principalmente as mais rentáveis.

Teve também gente das camadas mais humildes da população que tinham perdido seus empregos na cidade devido à grande crise econômica daquele Brasil de 1893. Assim como havia os engajados com uma persuasão mais incisiva feita com uma faca, praticamente obrigatória. Mas não eram muitos.

E, sim, teve também bastante gente que entrou para revolução somente para se vingar de um ente querido degolado, fuzilado ou simplesmente sumido pela ditadura de Júlio de Castilhos.

Em comum, todos eles tinham a vida rural como referência. A lida campeira, a maneira de ser e de viver, seus valores, suas regras, suas punições, suas vestes, suas canções e seus poemas. Enfim, aquele tecido sociocultural que chamamos de tradição gaúcha.

Tanto que os líderes deste movimento foram associados, na hora, aos grandes heróis farroupilhas, às grandes batalhas e ao desafio altivo daquele povo contra um poderoso império.

Para eles, a luta era a mesma de 50 anos antes, só que o inimigo havia se transformado em uma República que possuía uma mão de ferro muito mais forte e opressora que a de Pedro II. E também com mais impostos.

E tão forte foi este sentimento de identificação que os combatentes federalistas inseridos nesta cultura pampeana (e que estavam em um segundo escalão de chefia) começaram a crescer no movimento revolucionário e, literalmente, comandar a insurreição.

Afinal, ovelha não é para mato e as privações de uma guerra de movimento não são para qualquer um. Acrescente a isto, dias sem comer, noites ao relento, uma perseguição tenaz e implacável das forças legalistas e, é claro, muitas mortes. Muitas mortes mesmo.

Assim, Gumersindo Saraiva, um típico caudilho gaúcho que era coronel até o quarto mês da revolução, se tornou rapidamente general e, a partir daí, junto com seu irmão, Aparício, praticamente não recebiam mais ordens de ninguém. Seus soldados e a gente do campo simplesmente os idolatravam e o cantavam em versos e prosas por toda Campanha e Missões.

E foi assim também, e quase ao mesmo tempo, que surgiu a história do coronel José Serafim de Castilhos, mais conhecido como “Juca Tigre”. Uma outra lenda rio-grandense!

Natural de São Gabriel, Juca Tigre foi um federalista de primeira hora, tanto que participou da convenção de Bagé, em 1891, quando o partido de oposição a Castilhos foi fundado.

Coronel José Serafim de Castilhos, mais conhecido como o “Juca Tigre”

O coronel Tigre era “robusto, troncudo, estatura acima da média e barba inteira, à moda da monarquia. Dotado de energia invulgar, violento nas ações, mas acessível aos sentimentos de generosidade”, como definiu Arthur Ferreira Filho em seu clássico “Revoluções e Caudilhos”. Enfim, um homem rural que se transformava em guerreiro. Um típico gaúcho daqueles tempos.

Ele entrou para o Exército Libertador com uma tropa de 400 homens, no início de 1893, armados e municiados por sua própria conta. Antes, deixou ordens em sua estância, no Município de São Gabriel, para “auxiliar todo aquele que fosse para as fileiras maragatas”. E assim foi feito.

Conta a história que foi um dos mais ferozes guerreiros rebeldes e homem de inteira confiança de Gumersindo Saraiva em sua marcha de quase 3 mil quilômetros por três estados brasileiros.

Conta a lenda que, durante o Cerco da Lapa, com balas e canhonaços de todos os lados e calibres, “Juca Tigre puxou a faca, cortou o fumo, sovou a palha, enrolou um cigarão e o acendeu. Ao soltar a primeira baforada pela boca e nariz, uma bala inimiga lhe cortou o cigarro rente a boca, chamuscando a longa barba.

Sem o menor gesto surpresa, ou nervosismo, o caudilho cospiu longe a bagana que sobrou e reclamou com um sorriso maroto. ‘Ora, ora…esses pica-paus sempre me dando prejuízo…”

E com a mesma calma, sem se mover de onde estava, nem se importunar com o zumbido das balas que passavam, tirou novamente a faca, o fumo, a palha e fez um novo cigarro como se estive em uma roda de amigos…”.

E assim, manso para as balas, o coronel Juca Tigre foi crescendo em importância na revolução e suas ações militares se tornaram cada vez mais arriscadas e também ferozes. Tanto aqui no Rio Grande, como também em Santa Catarina e Paraná. Fez fama. Algumas não muito boas.

Participou, com destaque, dos principais combates do conflito e chegou com sua coluna na fronteira de São Paulo, aonde, em posição de vanguarda das forças rebeldes, chegou a tirotear com o exército florianista.

Logo depois, ainda no Paraná, quando um desiludido general Piragibe renuncia ao comando da vanguarda maragata, o coronel gabrielense o substitui.

E, quando Gumersindo empreende a sua volta ao Rio Grande do Sul, Juca Tigre já está estava empossado como comandante de uma das três colunas federalistas. A outra era de Aparício Saraiva.

Sua coluna foi perseguida implacavelmente pelas forças legalistas e foi obrigada a rumar para o Paraguai, não conseguindo fazer a junção com as dos irmãos Saraiva que pegaram a direção do Rio Grande do Sul.

Depois de um período de exílio, voltou a suas terras em São Gabriel e nunca mais se soube de um envolvimento seu em política, muito menos em refregas e revoluções. Mas seu espírito continuou o mesmo.

Conta o poeta gabrielense, Valdomiro Rocha, filho de Camilo Souza Rocha, que nos primeiros anos do século XX, seu pai foi junto com Juca Tigre assistir uma cancha reta nas redondezas de São Gabriel. E, lá chegando, entregaram suas armas para guardar, como era o costume da campanha gaúcha.

“De pronto arma-se uma peleia de facas, rabos de tatu e adagas entre os espectadores da competição.

Logo se viu que o vencedor era um castelhano destorcido e arrogante que exibia uma lâmina ensanguentada de adaga e pedia mais briga.

Juca parecia se divertir com a peleia e, de longe, apreciava a balbúrdia encostando-se em um muro da casa do proprietário do local. Mas assim não via seu amigo Camilo que, preocupado, advertiu o amigo com o desenvolvimento do caso e da aproximação do castelhano.

– ‘Coronel, acho bom pegar nossas armas. Este rolo vem se chegando…’

– ‘Não te preocupa, meu amigo. Isto não tem importância’, retrucou Tigre, mantendo o braço em repouso ao longo da parede de tijolos.

Enquanto isto, a voz do castelhano vinha cada vez mais se chegando e sempre exibindo a adaga ensanguentada. Novamente o amigo chamou a atenção de Juca Tigre.

– ‘Coronel, vou buscar as armas..’, insistiu Camilo, ‘…este bagual vai nos incomodar’.

– ‘Senta aí, Camilo. Não há perigo. Este castelhano é um jaguara.”, respondeu.

Neste momento, o castelhano chega à frente dos amigos perigosamente ao alcance de sua adaga e atrevidamente grita para todos em volta ouvirem.

– ‘En esta tierra no hay hombre! Ni El famoso coronel Tigre. El fue tigre em su tiempo, hoy és uma oveja!’

Disse e caiu. Um tijolaço lhe acertou em cheio a face esquerda, pondo-o por terra.”

Juca, enquanto disfarçava o desinteresse pelo caso, retirava com o dedo um tijolo da parede para usá-lo em momento oportuno. O caudilho orgulhoso repugnava usar armas honradas em peleias épicas com um desclassificado qualquer.

(Histórias de um maragato de corpo e alma. Lendas do Rio Grande!)

(*) RICARDO RITZEL é jornalista e cineasta. Apaixonado pela história gaúcha é roteirista e diretor do curta-metragem “Gumersindo Saraiva – A última Batalha”. Também é diretor de duas outras obras audiovisuais históricas: “5665 –Destino Phillipson”, e “Bozzano – Tempos de Guerrra”. Ricardo Ritzel escreve neste site aos sábados.

Bibliografia:

– Juca Tigre e o caudilhismo maragato, de Elio Chaves Flores, 1995, Martins Livreiro – Editor

– Revoluções e Caudilhos, de Arthur Ferreira Filho, 2ª edição

Nota do Editor. As fotos que ilustram esse artigo são reproduções do Museu Júlio de Castilhos, de Porto Alegre.

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2 Comentários

  1. Meu bisavô foi contemporâneo do Coronel Juca Tigre, companheiro de peleja. Meu avô também de São Gabriel e tá Maragato!

  2. Muito bom. Segunda Guerra é interessante, mas foi na Itália. Capitão Rodrigo, Toribio, o Sobrado, ficção sobre a história.

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