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ARTIGO. Leonardo da Rocha Botega e o papo de Bia e Val, socialites contra ‘marmita para moradores de rua’

O nada discreto charme da lumpen-classe média brasileira

Por LEONARDO DA ROCHA BOTEGA (*)

Luís Buñuel (1990-1983), cineasta espanhol naturalizado mexicano, foi um dos grandes nomes da sétima arte. Um dos responsáveis por trazer para o cinema a perspectiva surrealista que propunha a expressividade espontânea, o pensamento livre e a valorização do inconsciente como método de libertação das artes do controle exercido pela razão e pela lógica. A construção de uma realidade paralela, cheia de uma acidez tragicômica crítica da padronização imposta pela sociedade burguesa, é a grande marca de seus filmes.

É de Buñuel o filme “O discreto charme da burguesia”, onde o autor satiriza a reunião de um grupo de amigos da classe média/alta francesa para um jantar que acaba não se realizando pelos motivos mais absurdos. Convidados que chegam um dia antes, anfitriões que saem pela janela para fazer sexo no jardim, e até a interrupção do jantar por manobras militares realizadas dentro da casa. Tudo com muito estilo e requinte.

O Brasil, em inúmeros momentos de sua história, parece ser um retrato do cinema surrealista. Da “Boca do Inferno” de Gregório de Mattos à hipocrisia dos escravocratas em Machado de Assis. Da imoralidade dos moralistas na Pornochanchada ao humor indignado das Cartas da Mãe de Henfil. Do lenço piolhento de Carlota Joaquina aos pedidos de censura à exposição Queermuseu. Tudo remete a uma realidade que, se não existisse, dificilmente alguém construiria: a nada sutil deselegância do andar cima da sociedade brasileira.

Esse nada discreto “charme” estava estampado na conversa das socialites Bia Dória e Val Marquiori. As duas conclamavam às pessoas a não darem “marmita aos moradores de rua”, pois estes devem “se conscientizar de que tem que sair da rua”. Afinal “a rua hoje é um atrativo, a pessoa gosta de ficar na rua” e depois “o povo fala”. Não sei que povo é esse que tanto preocupava as socialites (socialite é profissão?). Com certeza não são os 24.344 moradores de rua da cidade de São Paulo, um número que aumentou 53% nos últimos 4 anos.

Da expressão facial típica de um “comam brioches” ao linguajar chulo simulando inteligência, tudo é copiado por setores de classe média que ao longo da história brincam de pau-de-sebo. Quando pensam que estão chegando ao topo, constroem seu próprio escorregão ao ver que os de baixo também estão subindo. Setores que, em meio a uma pandemia, não apenas lotam bares, como também, “arrotam” ignorância fingindo status. “Cidadão não, engenheiro civil, formado, melhor do que você” disse Nívea Del Maestro ao superintendente da Vigilância Sanitária do Rio de Janeiro, quando abordada juntamente com o seu marido, Leonardo Barros.

Curiosamente, o engenheiro Barros consta na lista dos que receberam o auxílio emergencial do governo. Também constam na mesma lista uma nutricionista que nas férias passeia por Paris e Barcelona; uma comerciante com casamento marcado em uma praia paradisíaca do Caribe; o dono de uma vinícola e até a moradora de uma cobertura luxuosa em Espumoso-RS. Em comum a eles: imagens nas redes sociais protestando contra a corrupção usando camisas da CBF, instituição que entre os seus últimos cinco presidentes, um está preso nos Estados Unidos e outros dois não podem deixar o país.

Nívia perdeu o emprego após a exposição do seu ato em Rede Nacional. Enquanto isso, as falas de Bia e Val são justificadas pelos mesmos argumentos injustificáveis de sempre. Para o simulacro brasileiro de Sociedade de Corte, não bastam supostos símbolos de status e prestígio. Nívia pensava pertencer a “Corte”. Ledo engano! De vez em quando, para atingir seus objetivos, a “Corte” até faz a lumpen-classe média pensar assim. Porém, quando tem oportunidade, essa mesma “Corte” prova àqueles que possuem parcos recursos (e mentalidade aristocrática) que seu lugar não é no andar de cima.

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

Observação do editor: A foto que ilustra este artigo é de Divulgação do filme “O discreto charme da burguesia”

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