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ARTIGO. Leonardo da Rocha Botega, Elza Soares e as nove décadas da mulher que surgiu do ‘planeta fome’

90 anos da Mulher do Fim do Mundo

Por LEONARDO DA ROCHA BOTEGA (*)

Dia 08 de março de 2020, Dia Internacional da Mulher, em uma semana os espaços de lazer estarão fechados e o convívio público estará restrito (ou pelo menos deveria ter sido assim) por conta da maior pandemia mundial desde a gripe espanhola de 1918. Enquanto isso não ocorre, no palco do Auditório Araújo Viana em Porto Alegre, uma mulher negra cantava com toda a potência de sua voz: “Eu sou mulher do fim do mundo/Eu vou, eu vou, eu vou cantar/Me deixem cantar até o fim”.

Aquelas palavras, ecoadas na melodia forte de Elza Soares me emocionaram profundamente. A sensação de finitude martelou a minha cabeça como a ideia proferida por Feuerbach de que “a morte é um fantasma, pois só existe quando não existe”. Elza estava ali, Elza existe, Elza superou tudo e, aos 89 anos, sabia muito bem o que dizia ao cantar que “Tem um Brasil que soca/Outro que apanha”. Elza apanhou muito dos homens e da vida.

Aos cinco anos de idade, Elza diz ter visto São Jorge, prometeu ao Santo que seria uma “menina boazinha” se ele pedisse ao pai que não batesse mais nela. Eis que o Santo respondeu que ela iria apanhar mais da vida do que do próprio pai. Foi forçada a casar aos 13 anos. Em meio a um relacionamento marcado pela violência doméstica e sexual, perdeu dois filhos por desnutrição. Viúva aos 21 anos, teve uma filha sequestrada (recuperada apenas 30 anos depois) e encarou o preconceito de Ary Barroso quando, em 1953, foi se apresentar em seu programa de calouros usando um vestido largo da mãe ajustado com alfinete e uma sandália velha. Soltou a voz e cantou “Se eu quiser fumar eu fumo/Se eu quiser beber eu bebo/Não me interessa mais ninguém/Se o meu passado foi lama/Hoje quem me difama/Viveu na lama também”.

Os versos de Lama, música de Paulo Marques e Aylce Chaves, cantado por uma jovem negra que em nenhum momento se deixava abalar lhe renderam a nota máxima e a pergunta feita pelo apresentador: “De que planeta você veio?”. A resposta foi: “Do planeta fome”. A partir daquele momento parecia que a sua fome de ser feliz seria saciada. Conheceu Garrincha, por quem se apaixonou. Foram amantes e após um ano nessa relação, Elza exigiu que Mané escolhesse ou ela ou a sua esposa. O “gênio das pernas tortas” ficou com ela. Casaram, viveram o preconceito de uma sociedade hipócrita e a violência da Ditadura Civil-Militar.

Elza havia cantando no Comício da Central do Brasil em apoio às Reformas de Base. Teve sua casa metralhada e com medo foi para o exílio. Voltou e deu à luz a Manoel Francisco dos Santos Júnior, o Garrinchinha, único filho do casal, que viria a falecer aos 9 anos. Nos anos em que esteve com Garrincha, Elza atingiu a glória musical. Cantou e encantou mundo à fora. Porém, em casa viveu o drama de um marido alcoólatra e violento. Separou-se em 1982. Garrincha viria a falecer em 1983, vitimado pela cirrose hepática.

Nos anos que se seguiram à morte de Mané e do filho, Elza, deprimida, diminuiria o ritmo de sua carreira, contudo, não a abandona. Dá a volta por cima, reconstrói a vida, encontra um novo amor, mas não casa (Para quê? Amor não precisa de conveniências). Entra no novo século denunciando que “a carne mais barata do mercado é a carne negra” e afirmando “’Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim”. Promove o encontro das melodias de Lupicínio Rodrigues com Baiana System, BNegão e Flávio Renegado, da MPB com o Rap Nacional, das periferias dos séculos XX e XXI. Agrega na luta contra o Planeta Fome, as lutas contra o machismo, o racismo e a homofobia. Canta o desejo de querer “ver o seu povo de cabeça em pé”. Lança 5 álbuns, ganha um Grammy Latino, um título de Doutora Honori Causa pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, uma homenagem da Escola de Samba Unidos do Cabuçu e outra da Mocidade Independente de Padre Miguel, bairro onde nasceu.

No último dia 23 de junho, Elza Soares, a mulher do fim do mundo, gestada no Planeta Fome, que transformou as dores, as injustiças, a violência e até mesmo o amor em potência criativa, completou 90 anos. Nove décadas de intensidade e superação que nos fazem apenas desejar: Por favor! Deixem Elza cantar “até o fim”. Sua voz é um sopro de esperança em tempos tão desencantados.

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

Observação do editor: A foto que ilustra este artigo é de uma cena do show de Elza Soares em Porto Alegre, em 8 de abril passado.

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