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Ultrapassamos o ponto de colapso. A próxima parada é o desastre – Por Valdeci Oliveira

Diferente de outros países, “nunca houve aqui restrição aguda da circulação”

Na última quarta-feira (17), realizamos na Comissão de Saúde do parlamento estadual um encontro que reuniu mais de uma centena de pessoas, entre gestores, profissionais da saúde, pesquisadores, médicos, entidades hospitalares de todas as regiões do estado e trabalhadores que estão na chamada linha de frente do combate à pandemia. O nosso objetivo ao propor tal audiência, foi buscar relatos daqueles e daquelas que estão diariamente tratando dos doentes da pandemia ou gerenciando as unidades de saúde e ouvir, sem filtros, blindagens ou meias-palavras, de forma direta, sobre a real situação vivida no Rio Grande do Sul.

Confesso que, mesmo sabendo que o atual quadro aqui no estado é gravíssimo – assim como no Brasil, onde a perda de vidas já equivale ao desaparecimento da população inteira  de uma cidade como Santa Maria – em inúmeros momentos, naquelas quase cinco horas, eu fui tomado por uma agonia e por um aperto no peito que há muito não sentia. Conforme avançávamos no debate, os relatos se transformavam em pedidos desesperados por socorro. Socorro por recursos, por conscientização da população e das lideranças políticas e empresariais, por renda emergencial aos mais vulneráveis, por anestésicos que minimizem a dor quem precisa ser entubado, por leitos e por mais recursos humanos em apoio aos já exauridos e esgotados profissionais que estão dobrando suas cargas de trabalho e tendo suas férias suspensas. Entre lágrimas e desabafos, os gestores e trabalhadores de hospitais clamavam pela óbvia ampliação – e fiscalização – das medidas de restrição à mobilidade social, pois a matemática é simples: quanto mais pessoas estiverem circulando o mesmo estará acontecendo com o vírus e sua variante mais mortal. E nos lembravam que, ao contrário de outros países em situação semelhante, nunca realizamos aqui, de verdade, uma restrição aguda da circulação de pessoas. Brincamos de proibir alguma coisa, alguma coisa acolá, mas sem a continuidade e a intensidade necessárias.

Guardadas as devidas proporções, era como se eu não estivesse em uma reunião, mas sim dentro de uma emergência hospitalar, vendo, a cada minuto, chegar mais e mais pessoas contaminadas sem ter onde colocá-las. Era como se eu também assistisse, impotente e assustadoramente chocado, a saída, por outra porta, de outro tanto de pais, mães, filhos e irmãos de alguém, ensacado e já sem vida, que seria enterrado sem sequer ter o direito a um último adeus. Para mim, foi uma experiência que, tenho certeza, nunca se apagará da minha memória, pois estava diante de pessoas cuja única preocupação e missão era a de tentar salvar vidas e não os votos numa próxima eleição ou o caixa financeiro resultante das vendas do final do dia. Se tratavam de homens e mulheres que traziam suas experiências reais do dia-a-dia, que viam e sentiam a dor causada a milhares de pessoas por conta de um sistema que entrou em colapso. Se tratavam de pessoas que sabiam muito bem que parte considerável da fúnebre estatística diária poderia ser evitada.

A cada fala, o descortinar de uma tragédia anunciada, o resultado das irresponsabilidades geradas pelo negacionismo ou pelo minimizar de uma situação que, há um bom tempo, já não nos é mais nova.  Uma tragédia que vem sendo paulatinamente relativizada, negada. Eram falas que diziam que a maioria dos leitos “abertos” nas últimas semanas o foram por conta do óbito de quem os ocupava e que tinham perdido a batalha pela vida. Nos diziam que a já inaceitável situação que hoje experimentamos tende a piorar caso sigamos com a atual receita prescrita por aqueles que institucionalmente têm o poder decisório em suas mãos. Nos alertaram que irá faltar oxigênio medicinal e até mesmo insumos básicos como relaxante muscular e que de nada adiantará ampliar a capacidade de atendimento enquanto a transmissão do vírus não for controlada.

E todo esse cenário caótico está posto justamente num momento em que o RS se prepara para flexibilizar as poucas medidas de contenção à doença até aqui aplicadas e enquanto muitos outros estados e regiões do país vão em direção oposta e endurecem suas ações para conter a pandemia.

Senhor governador, não é a hora de abrir a guarda e retroceder na defesa da saúde de todos e todas. Estamos perdendo em vidas, dentro do nosso território, o equivalente a uma tragédia da Boate Kiss por dia. Pouco mais de 72 horas atrás, foi como se fossem duas, com mais de 500 óbitos. Tenho certeza de que, se o senhor ouvir os gestores dos hospitais, médicos, enfermeiros, auxiliares, cientistas, pesquisadores e também o lamento da dor de  milhares de famílias que já tiveram um ente querido perdido para o vírus, não levará adiante uma atitude que, sem dúvida alguma, nos obrigará a abrir ainda mais covas para enterrarmos a nossa gente. Encerro essa reflexão com a frase do médico, mestre e doutor em saúde Armando De Negri, presente na reunião de quarta-feira: “Passamos do ponto de colapso. Agora, estamos caminhando para o desastre.”

(*) Valdeci Oliveira, que escreve sempre as sextas-feiras, é deputado estadual pelo PT e foi vereador, deputado federal e prefeito de Santa Maria. Também é 1º Secretário da Mesa Diretora da Assembleia Legislativa e Coordenador da Frente Parlamentar em Defesa da Duplicação da RSC-287.

Nota do Editor: a foto (de Clóvis Prates/Divulgação/HCPA) que ilustra este artigo é da Emergência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, com fila de pacientes por uma vaga em leito da UTI

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Um Comentário

  1. O falso dilema entre economia x saúde continua. Sem vida não há economia. A economia a gente recupera, como já fizemos em outros momentos da História recente. Mas vidas, não….

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