Bomba de Alpaca – por Athos Ronaldo Miralha da Cunha
A chaleira preta chia no fogão à lenha, anunciando que está pronta para o chimarrão. Cevo o mate na cuia morena e sorvemos o amargo regato com os olhos atentos na imensidão da pampa.
A sombra do cinamomo, no calor do outono gaúcho, é o cenário preferido de nossas longas mateadas. O “Velho” com seu inseparável lenço maragato e sua bombacha parda é o parceiro nessas tardes de causos, reminiscências e silêncio campeiro. Enquanto as chilenas descansam solitárias num canto do galpão e um vira-lata late faceiro junto a porteira, chimarreamos e contemplamos o alaranjado da pampa que consome o sol indo ao encontro da noite. Ao longe um estrépito de patas de cavalo levantam poeiras na estrada. A antiga bomba de alpaca, herança de um avô que pelejou com ferro branco nas revoluções, nos acompanha com seu renovado brilho prateado. Amassada, não tem mais a ponteira de ouro, mas é a companheira predileta nos vespertinos mates. Entre um pito e um mate, contou-me, o maragato com os olhos voltados lá para o passado, que nesta bomba o Leão do Caverá chimarreou com os caudilhos, num capão de mato, em uma pausa na revolução de 23.
E o guri cresceu neste chão colorado, batendo espora em potrilhos, o lenço encarnado solto ao vento e mateando na velha bomba. Sorvendo o verde amargo, tradição de gaudério, na calmaria da terra pampeana.
Tantos foram os mates na parceria do saudoso maragato que o último causo ficou inconcluso. Num mês de maio fatal o “Velho” anoiteceu. Deixou de lado o buçal, as chilenas e a guaiaca. Deixou a bomba de alpaca cravada na erva adormecida. Deixou a chaleira preta esquecida sobre a chapa do fogão. Em silêncio foi embora, deu de rédeas na aurora e galopou na direção do céu. Ficou o último adeus no vítreo dos olhos. As profundezas dos nossos sonhos serão renovados em longas mateadas e um jovem parceiro será o herdeiro da bomba de alpaca.
Herdei a velha bomba e hoje dedilho uma milonga nos mates que sorvo “despacito”. Continuo com o olhar no infinito nas tardes que ficaram um pouco mais tristes. O mate ficou mais amargo, mais comprido. Nunca mais sorvi um chimarrão como aquele sorvido no derradeiro domingo. E sigo ansioso por um mate antigo naquela bomba de alpaca, que ainda hoje carrego comigo.
Nascido em Santiago do Boqueirão-RS, 30.10.1960, Athos Ronaldo Miralha da Cunha é graduado em Engenharia Civil e funcionário aposentado da Caixa. É autor dos seguintes livros: Os agachados – crônicas da Era Lula (edição 2012), Contos de Chumbo (Chiado Editora 2015), Tintos e Contos (Penalux 2017), O código Locatelli – romance (Penalux 2018), Sofrendo em Paris – crônicas (Penalux 2018) [1º lugar no prêmio Internacional Alejandro Cabassa 2017 – UBE-RJ e Livro do ano na categoria crônicas 2019 – pela ABRIL – Academia Brigadiana de Letras] e Contos de prata (Penalux 2020). É detentor da cadeira número 32 da Academia Santa-Mariense de Letras cujo patrono é Apparício Torelly.
Este conto foi publicado com autorização do autor. Crédito da imagem que abre o conto: Maiquel Rosauro / Arquivo
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