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Jacarezinho: grupos de extermínio? – por Paulo Pimenta

“Democracia digna do nome não pode admitir ‘Zonas de Exclusão’ de direitos”

Colhida pelo fogo cruzado entre duas forças do crime organizado: a milícia e o tráfico de entorpecentes, num território onde o Estado nunca comparece como garantia de direitos e prestação serviços, mas sempre como força armada de repressão, a população de pobres e negros das favelas do Rio se debate entre a fome e a violência, essas duas constantes inseparáveis do seu quotidiano, agora acrescidas pela pandemia. 

Na carnificina planejada, executada em 6 de maio na favela do Jacarezinho, Zona Norte do Rio, o embate entre a milícia e o tráfico, a milícia aparentemente levou a melhor. Ancorada no aparato do Estado, expulsou o concorrente, promoveu uma operação de limpeza para estabelecer o controle sobre o território e, de quebra desafiou a Arguição de Descumprimento de direito Fundamental (ADPF) do STF que limita ações repressivas durante a pandemia.  

A face da barbárie exposta pela carnificina da favela do Jacarezinho, que deixou um saldo de 28 mortos, expõe uma verdade histórica que a sociedade brasileira evita encarar: o racismo estrutural, que faz com que Estado Democrático de Direito, pelo qual os defensores da democracia lutamos, não contemple a favela, como afirmou o ex-Chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, delegado Hélio Luz, numa lúcida análise, em entrevista nos últimos dias.

“Na senzala do século XXI”, a favela, a polícia tem como objetivo manter no poder quem está no poder. Ou seja, manter a elite intacta, não permitindo a ascensão do povo pobre”. Ocorre que o “Estado brasileiro é um Estado escravista. Que exclui, que separa, separa muito. O abismo social aqui é muito grande.  84% da população está excluída. E qual é a função da polícia? É manter os 84% sob controle. A qualquer preço”, aponta Hélio Luz.

Qual é o instrumento de controle? A polícia: o feitor coletivo para manter intocadas as desigualdades sociais. Qual é o método? O método de sempre, a violência indiscriminada. Quarenta mil mortes violentas em 2019/2020, no Brasil. Em nenhum lugar do mundo se mata tanto, incluídos aqueles países que se encontram em guerra civil aberta. A máxima repetida pela direita há décadas, “Bandido bom é bandido morto, não trouxe mais segurança. Traz mais corrupção, mais crimes e mais mortes”, lembra Luiz Eduardo Soares, um dos mais reconhecidos estudiosos de segurança do país.

A desenvoltura com que os órgãos policiais se movem nas periferias das grandes cidades brasileiras é fartamente conhecida. Na operação que resultou na carnificina da favela do Jacarezinho, a cargo da Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente – DPCA, os policiais cumpriam 21 mandados de prisão. Dos alvos dos mandados, seis procurados foram presos. Outros seis foram mortos. Uma eficiência de fazer inveja às demais polícias do mundo. Outros 15 mortos não constavam entre os procurados pela DPCA.

Além das flagrantes alterações da cena do massacre, testemunhadas, fotografadas, filmadas, um delito já corriqueiro para dificultar a investigação posterior das circunstâncias do crime, há um aspecto que chama a atenção no meio da tragédia. O número das armas apreendidas durante a operação – 15 armas ao todo – foi menor do que o número de executados. E bem menor do que a mais de uma centena apreendidas no Condomínio Residencial do Clã Bolsonaro, no Rio de Janeiro.

Como explicar o discurso da reação violenta dos procurados pela polícia se o número de armas encontrado em seu poder soma a metade do número de mortos? Ou estaremos francamente diante de uma ação típica de grupo de extermínio?

Ao avaliar os resultados da operação o governador do Estado do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, certamente concluirá, diante do êxito inaugural de sua gestão, que jamais serão aliciados menores pelo tráfico, na favela do Jacarezinho.

Aparentemente para tranquilizar o país, o vice-presidente da República, General Hamilton Mourão veio em nosso socorro para afirmar taxativo: “Tudo bandido!” Obrigado, general, depois desse veredito dormiremos em paz.

“Dizer pura e simplesmente que eles eram criminosos não justifica matá-los. Principalmente quando se sabe que muitos desses mortos não representavam perigo nenhum. A polícia tem o compromisso legal de observar as leis. Observar a lei significa atirar quando há uma situação de legítima defesa, por isso policiais usam armas no mundo todo. No Jacarezinho houve m conjunto de mortos nunca visto no Brasil. Eu confesso que nunca vi algo desse tipo em nenhum lugar do mundo todo – e visitei muitos países estudando isso -, a não ser em locais de guerra civil, como a Síria e o Afeganistão”, observa o Coronel Reformado da PMSP, José Vicente Silva Filho, ao comentar a chacina. Não poderia encontrar melhor resposta ao arreganho fascista do general Mourão.

Os porta-vozes da operação subiram ao pódio para receber as comendas, numa entrevista não menos escandalosa do que o massacre que pretendia relatar, nos dando a dimensão do enraizamento do autoritarismo, racismo e fascismo no aparato estatal brasileiro.

“Os representantes da polícia civil criticaram em diversos momentos da coletiva o que chamaram de “ativismo judicial” que, segundo eles, tem impedido a presença do Estado, através da polícia, nas comunidades. Questionados mais de uma vez se estavam se referindo ao STF, os policiais disseram que não iriam nomear nenhuma pessoa ou instituição”. (BBC News, Brasil). Nem seria necessário…

As comemorações da chacina nas redes sociais são outro elemento complexo e doloroso que precisamos enfrentar, conclamando os setores progressistas e democráticos para que se posicionem em contraposição a esta cultura violenta e fascista que se alastra pelo território nacional.

A chacina perpetrada na favela do Jacarezinho, no 6 de maio, exige dos mecanismos institucionais de controle, especialmente o Ministério Público, as Comissões de Direitos Humanos das Casas Legislativas, mas também dos instrumentos da sociedade civil como a OAB, a Comissão Arns e outras entidades de defesa dos Direitos Humanos, um acompanhamento das investigações capazes de oferecer esclarecimentos satisfatórios para a maior chacina executada por forças policiais na história do Rio de Janeiro.

O massacre da favela do Jacarezinho não pode permanecer impune. Uma sociedade civilizada não pode permitir que os responsáveis por essa barbárie sigam utilizando o poder do Estado para repetir indefinidamente seus crimes contra os negros e os pobres que habitam as favelas e periferias do Brasil. Uma democracia digna desse nome, o Estado Democrático de Direito não pode admitir “Zonas de Exclusão” de direitos…

(*) Paulo Pimenta é jornalista e deputado federal, presidente estadual do PT/RS e escreve no site às quartas-feiras.

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