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O papa-defuntos – por Pylla Kroth

Já conhecia o sujeito há uns 30 anos e em cada encontro meu com o danado era uma surpresa com a sua nova profissão, pois não se fixava em nenhuma por muito tempo.  Foi marinheiro, garçom, chofer de praça, vendedor de livros, de bilhetes da loteria federal, leão de chácara de cabaré, chapista de xis, entre outras.

Para o meu espanto,  nos cruzamos dias atrás em um lugar curioso que não seria bom declarar aqui , pois é um lugar de respeito, acrescento…de muito respeito. “Uai! Tu por aqui?”, lhe pergunto. “Sim, amigo, depois de andar pelo centro do nosso Brasil varonil, fiz curso e me formei em… Necromaquiagem! Virei maquiador de defuntos”. Olhei espantado pra ele, sem saber se chorava ou se ria.

Logo me veio na lembrança certa feita quando eu era menino e toda minha pacata cidade achou linda a maquiagem de uma falecida que morrera na cidade grande e já chegou prontinha no caixão para o velório. E em seguida lembrei-me também de outro amigo, este dono de uma funerária, lá na cidade donde vim, o Carlão, que tão bem preparava e prepara os mortos até hoje para o evento final da vida.

Com uma pequena diferença, o Carlão tem cara de defunto e esse meu amigo que se tornou recentemente maquiador de defuntos, não. Esse tem cara de gozador e brincalhão. “Trato de tornar o defunto mais belo do que realmente era em vida para quando adentrar no reino dos mortos esteja “nos trinks”, ou seja, em boa aparência!” diz ele. “Essa profissão tradicional já está com a humanidade desde tempos imemoráveis” complementa, com toda naturalidade.

Isso é fato, lembro de meu amigo falando como deveria ser um funeral, e falava com gosto de quem sabe e aprecia o oficio: “caixão com magníficas alças de brilhantes, velas artificiais para não exalar cheiro e várias coroas fazem parte de um velório bonito, além do cafezinho bem forte, “De levantar defunto”, como dizem no popular.

Vejam bem o nível da conversa! Quando de repente, enquanto ainda falava, eis que chega o carro fúnebre do necrotério trazendo mais um cadáver.  Ele sem titubear convida: “que tal tu assistires ao meu show agora, Pylla? Eu já fui em vários teus! Entre e verás minha magia!” Num sentimento inexplicável, que posso definir apenas como curiosidade, aceitei o convite. E lá estava eu assistindo aquilo tudo fingindo naturalidade, embora comigo mesmo estivesse estupefato. Então começa o espetáculo narrativo dele com um comentário: “olhe a paz que traz a cara de um defunto! Sem dúvida, o morto fica mais bonito do que era quando vivo, é o dever cumprido!”.

Aí interroguei a respeito das buchas de algodão de antigamente, ficava as vistas, ao que ele me responde que hoje se tem todo cuidado em enfiar bem pra dentro pra não aparecer….e traca-lhe algodão no cadáver! Eu insisto em inquiri-lo: “mas depois de morto de que irá adiantar ficar bonito?”, e ele me responde daquele jeito trocista mas como se falasse sério mesmo: “e sabe lá quantas ex-mulheres irão aparecer  no velório? Já houve situações em velórios que tu nem imagina!” Peço que me conte e ele prossegue a prosa enquanto trabalha: “uma bonitona desmaiou ao pé do caixão e depois de um copo d’água com açúcar acordou e gritou que o filho que ela carregava na pança era do falecido; foi quando a titular do defunto partiu pra cima da moça e a peleia foi grande, coisa triste de se ver! Em outra feita até o padre da cidade levou uma rasteira de um herdeiro quando alegou que o defunto tinha deixado por escrito pra ele uma ponta de gado e uma fazenda!” Caímos na gargalhada!

Eu nem olhava mais o trabalho a esta altura do show, e foi quando falamos do dono da funerária e ele olha pra mim e diz: “esse quando cumprimenta as pessoas , diz “como vai?” e quando tu vira de costas ele fala baixinho “quando vai?”, o homem é um perigo! Papa-defunto mesmo, Pylla!”

Já comecei a ficar desconfiado e querendo logo dar no pé dali antes que a conversa ficasse mais estranha ainda quando ele resolve começar me assustar mesmo: “quando tu morreres, fica tranqüilo, magrão, vou fazer uma reparação estética e até dar um tratamento nas tuas lindas melenas, digna de celebridade, e de graça, em nome da nossa amizade!”, complementa ele, com ares de palestrante da hora dizendo que “a morte é um conceito! Um evento quase festivo!” Tratei de sair rapidinho dali.

Todos dias passo na frente da funerária, que fica no meu caminho de casa, mas não tenho a intenção de botar meus pés ali tão cedo. Eu, hein?!  E o pior é que depois dessa quando passo por ali e ele me vê agora me cumprimenta, brincalhão, perguntando: “E aí? Quando vai?”. E eu, por garantias, já respondo: “nem morto!”

OBSERVAÇÃO DO EDITOR: a imagem que ilustra esta crônica é uma reprodução do Google Imagens/Revista Piauí.

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