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Diarreia – por Orlando Fonseca

Tem a palavra do poeta. E a verborragia escatológica de Bolsonaro

Porque, dependendo do tempo, cabe ao poeta trazer à luz a palavra certa. Nem sempre esta é a verdadeira, a que comporta a correção vocabular, a que respeita as regras de bom senso ou de bons modos. Porque uma coisa cabe ao poeta – e à arte de modo geral – romper com a ordem canônica, com as convenções e deixar à mostra as contradições daquilo que o poder insiste ser a lei.

Assim foi que, em plenos anos 70, ainda ferviam as tensões e distensões de uma ditadura no país, Ferreira Gullar anunciava a introdução da palavra “diarreia” na poesia brasileira.

Outra coisa, e muito diversa do que eu disse antes, é um presidente introduzir no discurso oficial uma palavra que aqui, neste espaço, só pode ser escrita com alguns asteriscos.

Aliás, o tal presidente em verdade deu curso ao modo como vem fazendo desde que tomou posse, usando e abusando da escatologia verborrágica como liturgia do poder. Tanto em seu cercadinho, nas lives que tem feito na internet, quanto na maneira de fugir às perguntas de repórteres – especialmente mulheres. Qual o tamanho do abismo entre uma e outra coisa?

Somos seres de palavra. Precisamos de uma linguagem para nos pensarmos, pensarmos a realidade circundante e realizarmos as devidas trocas para inserção na corrente do que se chama mundo, civilização, humanidade.

De outro modo, seríamos apenas bestas feras rugindo para determinar limites, quando não usando patas ou chifres para impor nossa vontade. Portanto, qualquer palavra é um atestado vigoroso da nossa existência.

E algumas palavras, ditas a seu tempo (ou fora dele), com certa combinação de vocábulos ou de circunstâncias, são armas poderosas. Seja na arte, seja na política, certas palavras – e não se trata de lirismo da MPB – brilham ou explodem mais do que as outras. E fazem pensar.  

Gullar não introduziu aquela palavra para diminuir a sua ou a nossa poesia. Sim, porque sendo brasileira, trata-se, a partir do momento em que ele a coloca em seu poema, da poesia nacional.

O conjunto de poemas escritos entre 1962 e 1974, não por acaso um período rico de acontecimentos para o país e para o poeta – na condição de cidadão – foi publicado no seu livro Dentro da noite veloz, lançado em 1975. Nesse intervalo, passou do movimento dos Centros Populares de Cultura para a anistia, tendo sido perseguido pela repressão política, a vida clandestina e o exílio.

No poema “A bomba suja” anuncia a entronização estética do vocábulo citado, porque “Mais que palavra, diarreia/ é arma que mata”. Não o fez por recurso retórico, senão como necessária denúncia, sujando de realidade, emporcalhando de miséria o repertório poético brasileiro.

Conjuntura conta para a interpretação do mundo em que vivemos, mesmo que seja o Brasil, esse Brasil no qual estamos, cada vez mais abestalhados. No qual vemos queridos morrendo por causa de um vírus letal; no qual os leitos de UTI de hospitais estão abarrotados, e profissionais da saúde tendo de decidir quem vai ou quem fica por aqui mesmo, neste país de contradições; a fome atinge mais agudamente, porque a economia fraqueja diante da necessidade de protocolos sanitários rígidos.

Nesse Brasil em que, ao invés de comprar vacinas, em promover um programa de vacinação em massa, em vez de apresentar uma proposta para a saída da crise, a autoridade máxima se limita ao repertório escatológico para se defender das acusações de incúria.

Introduz na vida republicana a banalização do mal, que troca vontade política por termos de baixo calão. Nenhuma fala de acalento a quem perdeu um parente, o emprego, a esperança, a fé no futuro desta grande nação. “C***** pra tudo isso” é o que os brasileiros ouvem estarrecidos, “Não pela palavra fria – como diria o poeta – mas pelo que ela semeia”. 

E fecho esta lamentação, que deveria ser uma crônica, com os versos finais do poeta: “E sobretudo é preciso/ trabalhar com segurança/ pra dentro de cada homem/ trocar a arma de fome/ pela arma da esperança.

 (*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

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5 Comentários

  1. Historia pela metade com objetivo de auferir ganho politico é para dar risada. Pico é daqui 15 dias. Voltem para casa e quando piorar procurem um hospital. Fecha tudo e depois a gente ve. Midia querendo derrubar o presidente, deixando de informar para fazer campanha e jogando a credibilidade (a pouca que resta) fora é no minimo espantoso.
    Harvard publicou noutro dia um estudo sobre a fadiga de lockdown, a diminuição de resultados com o passar do tempo porque as pessoas deixam de respeitar as medidas (Lockdown Fatigue: The Diminishing Effects of Quarantines on the Spread of COVID-19). Existem outros que foram ignorados pelo simples motivo que não coadunam com a ‘narrativa’ necessária. E a mídia ‘vamos mentir mas é pelo bem da população ignorante’.
    Fica a sinalização da virtude. Este papo de mal, maldade, esperança, fé, empatia (e outras palavras do mesmo tipo) só enganam crianças.

  2. Pandemia, bem ou mal, está ficando para trás. Previsivel. Acusações de incuria, até prova em contrário tiveram que descer até o terceiro escalão. Pouco importa, Cavalão, o Mágico de Oz, dificilmente se reelege.
    Começo do ano uma vintena (quem le Asterix está mais familiarizado com a palavra) de generais da reserva escreveu uma carta aberta na França. Problemas. Importação espúria do pensamento da Escola de Frankfurt/Gramsci dos EUA. Infiltração dos Black Blocks (anarquistas) nas manifestações dos Coletes Amarelos. Regiões da França onde não se fala mais frances (algo parecido existe na Alemanha). O que a longo prazo pode levar a uma guerra civil. Guetos que se expandem e não tem a mesma cultura e nem os mesmos valores (iluministas de certa forma). Noutro dia um sujeito tentou estapear Macron. Ultima eleição, ocorreu neste ano, mostrou bons resultados para a centro-direita. Abstenção recorde, falam em implementar voto online ou via correio.

  3. Nossa mente é simbólica. Não no nivel cartilha que todos falam por aí, nem no nivel dos jornalistas que passaram raspando ou foram empurrados para fora da disciplina de semiótica. Vide os ideogramas comuns na Asia.
    Palavras são coisas, no maximo, até a geração seguinte a minha. E comum ver por aí o ‘tenho muita fé na proxima geração porque meu netinho/minha netinha (ou meu filho/filha)’ é assim, assado, cozido e frito. Bolha. Há um boom de podcasts no Youtube. Conversam com todo tipo de pessoa (prostitutas, atrizes porno, ex-presidiarios e até um serial killer, Pedrinho Matador). Começo do ano assisti uma parte da conversa com um filho de cantor sertanejo. Vocabulário dele não tem muito mais que 100 palavras. Pessoal do RJ, há quem troque o ‘ti’ pelo ‘tu’ (‘vou trazer um copo dagua pra tu’). Pessoal das ‘quebradas’ de SP tem um dialeto proprio, as vezes é dificil de acompanhar. Por aí vai. Alás, politicos já descobriram os podcasts, Ciro Gomes aproveitou bastante. Haddad menos. Noutro dia o Doria apareceu.

  4. Liturgia do poder. Problema é que preocupam-se demais com a tal liturgia e esquecem do resto (politicos em geral). Cabelo em dia, terno ou tailleur bem alinhado, barba/maquiagem, tudo nos trinques. Só que a dita criatura é um(a) jaguara ou um(a) inutil. É muita imagem e pouco conteúdo. É um côcô embrulhado para presente.
    Fugir a pergunta de reporteres (onde foi parar o ‘pergunta o que quer e responde se quiser?’) é ‘narrativa’. ‘Especialmente mulheres’ idem. Não costumo acompanhar as peripécias do Cavalão, o Mágico de Oz, mas parece que trata-se obviamente de uma tentativa, possivelmente, de atiçar as feministas petistas, aquelas que tem o ‘grelo duro’ (foi depois do mandato, mas fazer uma lista do que aconteceu antes toma tempo).

  5. Arte pode fazer o que bem entender, quase ninguém mais dá a minima. Ressalva, Paulo Leminski, finado, teve uma antologia muito bem vendida anos atrás. Ou seja, não há subsitituto para o talento. Ou seja, o oceano de submediocridade que existe por ai vai continuar irrelevante. Marx dizia que da quantidade sairia a qualidade. Ou seja, talento versus oceano de submediocridade.
    Anos 70 terminaram. Ferreira Gullar idem.

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