Artigos

Independência, um projeto de nação para poucos – por Leonardo da Rocha Botega

Há um “limite” para a ação pelo conjunto da sociedade, lamenta o articulista

Dia 4 de setembro de 2021, três dias antes do 199º aniversário da Independência do Brasil. Pouco antes das 12h recebo a ligação de um amigo, uma liderança comunitária. Preocupado com a problemática da miséria que assola milhões de brasileiros e brasileiras, relata a situação que havia vivenciado alguns dias antes: um vizinho bateu na sua porta com um pacote de macarrão e algumas latas de sardinha perguntando se seria possível ele cozinhar para ele o almoço, afinal teve dinheiro para comprar a comida, mas não teve para o gás.

Assim como essa situação, milhares de outras são relatadas no dia a dia das vivências periféricas do Brasil profundo. Aquele Brasil que só aparece para boa parte da sociedade brasileira quando há violência ou nas sorridentes atitudes das caridades de ocasião natalinas (com boas selfs obviamente). Fora disso, é invisível! Afinal, é melhor olhar para cima e louvar as migalhas caídas do poder daqueles que historicamente reproduzem seu projeto de captura da nação.

Um projeto de captura que esteve justamente na base fundante do 7 de setembro de 1822. Longe de ser uma unidade colonial, o Brasil constituiu-se como um conjunto de regiões dispersas, onde a identidade local e a identidade portuguesa prevalecia sobre qualquer projeto nacional.

A única unidade que prevalecia entre às “elites brasileiras” era a defesa da manutenção da escravidão. Um fato que ficou evidente nos debates das Cortes Portuguesas instaladas após a Revolução Liberal do Porto de 1820 que exigiu o retorno de D. João VI à Portugal.

A defesa da manutenção da escravidão foi escancarada em meio aos intensos debates sobre a reorganização do Império Português. Conforme István Jacson e João Paulo Pimenta, para os “homens de bens” da colônia “a forma de organização do Estado português deveria subordinar-se diretamente às condições de reiteração do sistema escravista na América”. A medida em que as proposições feriam esse princípio, o ponto de ruptura ia sendo costurado.

Desta forma, é inegável que a defesa da manutenção da escravidão e de um sistema de cidadania apenas para os “homens de bem” foi fundamental para a deflagração da Independência do Brasil.

Um processo contraditório, onde em meio a “Era das Revoluções” mundo afora, aspectos de manutenção das características que o Antigo Regime adotou no Brasil tiveram peso decisivo na declaração de uma Independência marcada pela incompletude e pela manutenção das estruturas excludentes da colonização.

Foi assim que o Brasil independente se forjou, como a mescla dos interesses do latifúndio escravocrata-exportador com os interesses absolutistas do príncipe D. Pedro. Interesses que, desde a outorga da Constituição de 1824 até a Noite da Garrafadas de 13 de março de 1831, entram em choque até a abdicação do Imperador, que encontrou refúgio na sucessão do pai no trono português. Eram os limites da independência transparecendo. 

Na década seguinte, os limites dos arranjos da Independência se evidenciaram ainda mais com as Revoltas Regenciais. Somente em 1840, com o golpe da maioridade que levou D. Pedro II ao trono é que o projeto de poder dos “homens de bens” foi novamente consensualizado. Sua base fundante seguiu sendo a mesma: a escravidão. Quando esta foi abolida, os “homens de bem” deram nova roupagem ao seu projeto e aboliram também a Monarquia.

A captura da nação pelos escravagistas, os “homens de bem” da colônia, que forjou a nossa Independência-dependente, não se esgotou com o passar de quase 200 anos. Mudaram os “homens de bem”, mudou a forma de Estado, mudaram-se as formas de governo, mas os interesses de cidadania limitada sempre estiveram (e estão) presentes. Eles reagem a cada mínima tentativa de abertura de brechas nestes limites. Reagiram em 1937, reagiram em 1954, reagiram em 1964 e reagiram em 2016.

A miséria que aflige quem escolhe comprar comida ou gás não os aflige. É parte de seu projeto. É parte de sua nação. O desemprego de 14,3 milhões de brasileiros e brasileiras não os aflige. É parte de seu projeto. É parte de sua nação. A fome que aflige 19 milhões de brasileiros e brasileiras não os aflige. É parte de seu projeto. É parte de sua nação.

É a parte oculta, não demonstrada, da farsa da “luta pela independência” bolsonarista. É o ontem, mais uma vez, dando nova roupagem para o hoje na manutenção de uma nação para poucos.

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

Artigos relacionados

ATENÇÃO


1) Sua opinião é importante. Opine! Mas, atenção: respeite as opiniões dos outros, quaisquer que sejam.

2) Fique no tema proposto pelo post, e argumente em torno dele.

3) Ofensas são terminantemente proibidas. Inclusive em relação aos autores do texto comentado, o que inclui o editor.

4) Não se utilize de letras maiúsculas (CAIXA ALTA). No mundo virtual, isso é grito. E grito não é argumento. Nunca.

5) Não esqueça: você tem responsabilidade legal pelo que escrever. Mesmo anônimo (o que o editor aceita), seu IP é identificado. E, portanto, uma ordem JUDICIAL pode obrigar o editor a divulgá-lo. Assim, comentários considerados inadequados serão vetados.


OBSERVAÇÃO FINAL:


A CP & S Comunicações Ltda é a proprietária do site. É uma empresa privada. Não é, portanto, concessão pública e, assim, tem direito legal e absoluto para aceitar ou rejeitar comentários.

Um Comentário

  1. Hummmm…..Vermelhinhos falam e escrevem como se o mundo lhes devesse satisfação. Problema é que a grande maioria está c4g4ndo para o julgamento ‘moral’ deles. Total zero.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo