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Quando Seu Cipriano e Dona Tereza encontraram Paulo Freire – por Leonardo da Rocha Botega

Na luta contra o analfabetismo, duas personagens que fazem história em SM

Ano 2000, em poucos meses iniciaria um novo século. Um século que era prometido e projetado como o século das grandes tecnologias. O século que se findava já havia sido marcado por intensas transformações nesse campo. O avião, a internet, o computador portátil, o fax, o celular, a televisão, os antibióticos e a bomba atômica foram frutos de uma dinâmica histórica de modernização e, também, de barbárie.

Ao longo do século XX, somando as duas grandes guerras e os inúmeros conflitos localizados, tivemos aproximadamente os mesmos números bélicos dos mil anos da Idade Média. No campo econômico, o número de crises, de maior ou menor intensidade, de longe superou qualquer outro século da história. No campo social, no Brasil do ano 2000, cerca de 14 milhões de pessoas viviam em situação de insegurança alimentar, mesmo com o boom que o setor agroexportador vinha tendo desde a década de 1970. No campo educacional, 12,8% de brasileiros e brasileiras eram analfabetos, entre eles Seu Cipriano e Dona Tereza.

Seu Cipriano era um senhor de meia idade, trabalhador de uma empresa da indústria da alimentação em Santa Maria. Soube, a partir de um boletim sindical, que no salão de festas do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias e Cooperativas da Alimentação de Santa Maria e Região estavam ensinando as pessoas a ler e a escrever. Se inscreveu para as aulas e pelas mãos da educadora popular Maria do Carmo aprendeu a ler e a escrever. Cada palavra nova era uma festa que contagiava toda a sua turma. 

Não era apenas em seu salão de festas que o SINTICAL auxiliava na luta contra o analfabetismo. Na parceria que havia estabelecido com o Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos, o MOVA-RS (Projeto do governo do Estado na gestão de Olívio Dutra), o sindicato também havia abraçado de forma solidária uma outra turma de alfabetização situada no Clube de Mães da comunidade Pôr do Sol, na Nova Santa Marta. Foi lá que Dona Tereza, uma avó septuagenária, também buscou o contato com as palavras.

Dona Tereza tinha dois objetivos bem definidos: aprender a ler para aprender novas receitas de culinária; e aprender a ler o nome do ônibus que devia embarcar para vir ao centro da cidade. Até então, ela localizava o ônibus pelo motorista, porém, quando trocava o motorista, constrangida, tinha que recorrer a ajuda de algum estranho. Certo dia chegou na aula e, extremamente feliz, se dirigiu a educadora popular Iara contando que finalmente havia conseguido ler “a placa” do ônibus.

O filósofo e educador Paulo Freire afirmou, em muitas de suas obras, que no processo de alfabetização não basta o educando aprender a ler as palavras, ele deve também aprender a ler o mundo. O aprendizado da leitura do mundo fez Seu Cipriano entrar para a direção do seu sindicato, se tornando, inclusive, presidente. Foi nessa condição que, no dia 11 de maio de 2006, juntamente com mais dois companheiros e uma companheira, se dirigia a Porto Alegre para uma reunião de negociação. Infelizmente, a reunião acabou não acontecendo. Seu Cipriano e os demais acabaram falecendo em um trágico acidente de automóvel. Anos mais tarde, Seu Cipriano foi homenageado com a denominação de um loteamento na cidade: Cipriano da Rocha.

Este mesmo aprendizado fez Dona Tereza ler o seu mundo e conquistar a liberdade de ir e vir sem constrangimentos. Infelizmente, não tenho mais nenhuma informação sobre o seu destino pós-MOVA-RS. O que posso afirmar é que foi uma pessoa muito feliz naquela sala de chão batido, onde as aulas se interrompiam com a ausência da luz solar. Ali, assim como Seu Cipriano no salão do SINTICAL, Dona Tereza encontrou Paulo Freire. Suas vidas nunca mais foram as mesmas. O método inventado pelo patrono da educação brasileira, que no próximo dia 19 de setembro completaria 100 anos, havia dado novos sentidos as suas vidas.         

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

Nota do Editor. A foto (sem autoria determinada) de Paulo Freire, que ilustra esse artigo, é uma reprodução da internet. Freire, o patrono da Educação brasileira, se vivo fosse, faria 100 anos neste domingo, 19 de setembro.

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Um Comentário

  1. O mais interessante, e também triste, é que se Seu Cipriano não tivesse aprendido a ler, também não morreria no acidente. A alfabetização abreviou-lhe a vida.

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