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Um breve ensaio sobre a ganância dos homens brancos – por Elen Biguelini

Esta semana foi repleta de pequenas discussões relacionadas ao racismo brasileiro. Um jornal publicou um artigo extremamente equivocado, e uma mulher negra falou, em rede nacional, uma frase que embora para ela fosse uma tentativa de empoderamento, representa um apagamento da maldade branca que levou à escravidão no mesmo programa em que uma cantora travesti usou uma camiseta com uma imagem de Anastásia Livre, uma representação da famosa imagem de uma escrava amordaçada sem sua mordaça.

Ainda que nosso país seja bastante miscigenado, reverbera entre a intelectualidade um mito de que o país se formou através da união pacífica de três raças: o branco, o negro e o indígena. O clássico texto de Gilberto Freyre já foi diversas vezes analisado por historiadores e antropólogos brasileiros que percebem no texto do autor e nas suas subsequentes interpretações um desejo de igualar a todos, apagando assim as experiências pessoais de cada raça brasileira. Acabam, assim, perpetuando o racismo.

Não trazemos aqui nenhuma novidade. A historiografia brasileira, bem como a sociologia, já vem há muito tentando desmitificar esta ideia. O brasileiro miscigenado não é fruto de uma mistura pacífica. Pelo contrário, a escravidão (tanto de africanos quanto de indígenas) foi extremamente violenta. E mesmo após ter sido abolida, o racismo perpetuou-se por toda a estrutura político-social brasileira. E teve como justificativa apenas a ganância e o preconceito dos homens brancos europeus. Foram eles que chegaram em terras africanas e se auto intitularam superiores, somente devido a sua cor. Foram eles que viram naqueles seres humanos dignos de respeito apenas um objeto.

Dizer que não há racismo no Brasil é impossível, ainda mais quando vemos homens negros receberem tiros porque carregavam um guarda-chuva ou apanharem porque andavam em um mercado.

Como historiadora branca, não cabe a articulista descrever a dor causada pela escravidão. Trazemos, então, uma descrição por parte de uma mulher negra do século XIX, que tem uma obra magnífica e que dá voz aos escravizados brasileiros: Maria Firmina dos Reis.

Na voz de Tulio: “A minha condição é de mísero escravo!(…) Ah! O escravo é tão infeliz!… Tão mesquinha e rasteira é a sua sorte, que…” (REIS, 1859, 35).

Na voz de Suzana: “Liberdade! Liberdade… ah! eu a gozei na minha mocidade! – continuou Susana com amargura – Túlio, meu filho, ninguém a gozou mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que eu. Tranquila no seio da felicidade, via despontar o sol radiante e ardente do meu país, e louca de prazer a essa hora matinal, em que tudo aí respira amor, eu corria as descarnadas e arenosas praias, (…) Ah! Meu filho! Mais tarde deram-me em matrimônio a um homem, que amei como a luz dos meus olhos, e como penhor dessa união veio uma filha querida, em quem me revia, em quem tinha depositado todo o amor de minha alma – (…). E esse país de minhas afeições, e esse esposo querido, essa filha tão extremamente amada, ah Túlio! Tudo me obrigaram os bárbaros a deixar! Oh! tudo, tudo até a própria liberdade!

[…]

Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a ‘mercadoria humana’ no porão fomos ‘amarrados’ em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa. Davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca: vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos!” (REIS, 1859, 101-103).

Muitas outras temáticas relacionadas à escravidão podem ser retiradas da obra de Maria Firmina, mas vemos estes trechos como os mais importantes para evidenciar a brutalidade branca. Não podemos deixar o apagamento e o revisionismo histórico diminuírem os sobreviventes da escravidão, ou ainda aqueles corajosos que fugiram, que procuraram todos os meios possíveis de se desvencilhar do cativeiro (as vezes até mesmo pela morte). Não podemos apagar Zumbi (seja figura histórica, seja mito), Dandara, etc.].

Voltamos a frisar que não foi a capacidade física dos africanos que fez com que os portugueses (e outros europeus) os transformassem em mera aparelhagem para seu sistema econômico. Foi sim, a ganância dos homens brancos europeus.

Dizer que não houve conflito é apagar estas histórias, é tentar retirar do homem branco (e da mulher branca) a culpa.

REIS, Maria Firmina. Úrsula. Belo Horizonte: PUC Minas, 2017 [1859].

*Elen Biguelini é doutora em História (Universidade de Coimbra, 2017) e Mestre em Estudos Feministas (Universidade de Coimbra, 2012), tendo como foco a pesquisa na história das mulheres e da autoria feminina durante o século XIX. Ela escreve semanalmente aos domingos, no Site.

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