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MEMÓRIA. E Santa Maria perde mais um de seus grandes, na Cultura. Morreu ontem Clênio Faccin

Aplausos a um dos maiores do teatro e cinema de SM, por Marilice Daronco

A morte de Clênio Faccin ontem, dia 4 de fevereiro, aos 78 anos, deixa a cultura santa-mariense, especialmente o teatro e o cinema, muitíssimo mais pobre. Nas redes sociais, Tau Golin, Luiz Carlos Grassi, Jair Alan Siqueira e outros não deixaram de fazer emocionadas manifestações a respeito dele e sua importância. A seguir, em colaboração especial para este site, confira o texto da jornalista (e doutora em comunicação) Marilice Daronco, que também teve sua experiência com este que é um dos grandes nomes da cultura santa-mariense:

Aplausos para Clênio Faccin

Por Marilice Daronco / Especial para o site

O ano era 2011. Já tinha tentado várias vezes a ligação para Capão da Canoa, onde estava morando o Clênio Faccin, para tentar entrevistá-lo sobre um dos momentos mais incríveis da história de Santa Maria: o cinema super-8. Foram dias de tentativa sem sucesso até que, para minha surpresa, o próprio Clênio me ligou, dizendo que soube que estava à sua procura. Quem contou para ele sobre a minha intenção foi o principal incentivador que tive para que a pesquisa sobre o cinema Super-8 em Santa Maria acontecesse: Luiz Carlos Grassi, um dos participantes do grupo que fez a cultura de Santa Maria acontecer naquela época.

Estava concluindo a Especialização em Cinema na UFN e meu desafio não era dos mais fáceis, pois muito se dizia, mas quase nada estava registrado sobre esse momento incrível do cinema em Santa Maria. Fotos? Existiam poucas. Os filmes? Havia aquilo que o Grassi tinha conseguido preservar e ainda não estavam restaurados. Notícias nos jornais da época? Praticamente inexistentes. Mas havia um lugar onde aquele período estava muito vivo, a memória de quem fez parte daquele grupo de realizadores, e era isso que alimentava a minha vontade de contar aquela história. 

Os anos de 1960 e 1970 foram uma época em que o cinema por aqui tinha as cores e o som da Geração Super-8. E, a cada entrevista que fazia, era quase como ouvir o som da moviola projetar todas as dificuldades que aqueles jovens dessa época passaram para fazer o cinema e o teatro acontecerem em uma Santa Maria que não contava ainda nem com o Theatro Treze de Maio. Com o Clênio não foi diferente, a entrevista foi uma viagem apaixonante no tempo.

Com o gravador e a câmera na mochila e com um entusiasmo gigante porque finalmente iria ouvir do próprio Clênio as suas histórias, corri para a rodoviária e no dia seguinte nos encontramos na casa onde ele vivia no litoral gaúcho.

Foi uma entrevista regada de gentileza onde ele compartilhou conquistas, como ter ficado 45 dias com o teatro casa lotado no espetáculo “A farsa da esposa perfeita”, montada com outro grande nome da nossa cultura, Pedro Freire Jr. Falou com emoção no olhar e orgulho na voz de ter conseguido atingir, somadas suas peças, 70 espetáculos com 2 milhões de espectadores, tudo cuidadosamente registrado nos borderôs de cada apresentação.

Clênio começou no teatro em 1961, em um pequeno espaço que existia na Casa do Estudante, o Teatro Universitário de Santa Maria (TU) que funcionava como um teatro de arena. Ele foi o último diretor do TU. Depois, fundou o Teatro Universitário Independente (TUI), que existe até hoje sob nova direção em um espaço que foi doado e leva o nome de seu pai, Victorio Faccin.

Sobre a determinação do grupo que realizava essas peças em denunciar a censura que as artes sofriam com a ditadura, vale contar uma história. Clênio Faccin, montou o espetáculo “Arena Conta Zumbi” que foi proibida pela censura de ser apresentada no Brasil. O grupo decidiu então se apresentar com a peça no Primeiro Festival Latino-Americano de Teatro Universitário, na Colômbia e conquistou o prêmio do júri popular.

Clênio contava que uma das maiores frustrações da sua vida foi que a verba da premiação, que seria usada para a construção de um teatro de arena, foi usada pela universidade para a construção da boate do DCE. Por isso, ele acabou se desvinculando da universidade e montando o TUI, projeto que até hoje oportuniza teatro para Santa Maria.

A entrada no cinema se deu por conta de uma peça em especial. Clênio contou na entrevista que nos anos de 1970 “nós tínhamos a ideia de montar um espetáculo chamado ‘Onde Não Houver Inimigo, Urge Criar Um’, com texto do João Bettencourt, e ele dizia no início que deveríamos colocar alguns slides de um policial perseguindo um suposto bandido. Achei que deveríamos fazer uma coisa diferente. Naquela época, a gente trabalhava com o Super-8, porque eu costumava filmar as viagens e as peças de teatro em Super-8. Então eu conversei com o Reinaldo (Pedrozo) e com o Grassi e começamos a fazer o roteiro. Decidimos fazer um Super-8 com uma perseguição, que mostrasse várias cenas hilárias”.

A ponta de ironia era, na verdade uma denúncia, sobre como aos olhos do AI-5 qualquer um poderia se transformar em um subversivo. “Eu montei o espetáculo porque ele estava dentro da realidade política vivida pelo país naquela época. Era muito interessante. Era um espetáculo rápido, com cerca de 20 minutos de filme e 40 de espetáculo. Eu tive informações, naquela época, que foi a primeira experiência de teatro e cinema juntos no Brasil” revelou Clênio.

Ele contou ainda que “nós passávamos essa gravação em um telão, antes de apresentar o espetáculo, até a prisão. Aí, o capitão entrava com o subversivo preso em cena. Era uma coisa inédita. Em 1972, levamos esse trabalho ao Teatro de Câmara, em Porto Alegre”.

Além do perigo da censura, existia outra complicação: a película super-8 é bem delicada, às vezes os encaixes quebravam e havia dificuldade de apresentar o filme antes do espetáculo. Mesmo assim, o grupo viajou boa parte do Estado de Kombi para apresentar a peça.

O filme O inimigo, que foi preservado e recuperado por Grassi está disponível no Youtube no canal https://www.youtube.com/watch?v=ML2AHVRVyys. Você pode conferir, também, diretamente no link abaixo:

Mas essa não foi a única aventura no cinema do grupo de amigos que se reunia no Centro Cultural, que ficava onde hoje está o Theatro Treze de Maio e contava com nomes como o de Grassi, Jair Alan Cortês Siqueira, Reinaldo Pedrozo, Modesto Wielewick, Clênio e outros apaixonados pela cultura. Eles fizeram outros filmes se revezando em diferentes funções. Um dos mais importantes para a cidade é “O Velório do Vicente Silveira”, que teve atuação de Clênio e foi dirigido por Wielewick.

Há pouco mais de uma década, quando tive a oportunidade de sentar a primeira vez e olhar nos olhos de Clênio Faccin ao vê-lo contar sobre as aventuras de sua época, ele disse com voz embargada o seguinte sobre a cultura da cidade:

“Eu me preocupo porque o Edmundo Cardoso já foi, o Pedro Freire já foi, eu estou com sessenta e poucos anos, parece que a gente não conseguiu… Parece que a cultura da cidade não decola”.

Desde aquela entrevista outros nomes desse grupo, como Modesto Wielewick, Joel Saldanha e agora o próprio Clênio, se foram. Todos deixaram um legado muito importante. Tenho um orgulho gigante de ter podido registrar algumas de suas memórias em meus dois livros, ambos distribuídos gratuitamente justamente para tornar mais conhecido o nosso cinema.

Mas acho que a pergunta de Clênio ultrapassa o tempo: o que pode ser feito para que a cultura da cidade decole e que iniciativas como a daquele grupo de amigos que fazia teatro, cinema e tudo o que podia pela cultura da cidade tenha valido a pena?

Obrigada, Clênio! Nos resta aplaudir em pé teu espetáculo em prol da nossa Santa Maria. 

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