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Não é faz de conta, é fome – por Valdeci Oliveira

Trabalho revela que o Brasil “não possui um exército de famintos, mas vários”

A quantidade de brasileiros com privação grave de alimentos é maior do que a população do Estado do Rio de Janeiro. É um número nada desprezível, independentemente da ideologia a partir do qual se enxergue isso. Dia desses, li que temos um exército de famintos, de malnutridos, de pessoas que, na melhor das hipóteses, consomem menos que o recomendado de calorias diárias. Outro tanto, com alguma sorte, tem acesso a algo abaixo do mínimo necessário. E uma parte, alguns milhões, na verdade, ainda menos do que isso. Apesar do tamanho dessa multidão, é como se fossem invisíveis.

Dos 116,8 milhões de brasileiros e brasileiras que convivem com algum tipo de insegurança alimentar leve, mais de 43 milhões (ou 20,5% da população) não possuem em seu cotidiano alimentos em quantidade suficiente para ingerir, o que é classificado cientificamente como insegurança alimentar moderada. Um outro tanto, este formado 19 milhões (9% da população, o que dá um estado do Rio de Janeiro inteiro), está passando fome e alcança o posto de insegurança alimentar grave. 

Longe de ser uma fake news (se fosse teríamos um caso de alegria diante de uma mentira), o estudo foi realizado poucos meses atrás, pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, a Rede Penssan. Se se tratasse de uma instituição pouco confiável o problema seria menor, sem dúvida. Mas estamos falando de uma rede de profissionais de várias áreas que atuam em diversas instituições de ensino e pesquisa sediadas em diferentes regiões do Brasil.

E o levantamento nos mostra que, ao contrário do que alguns pensam, o Brasil não possui um exército de famintos, mas vários. E se temos exércitos de famintos, por óbvio, temos exércitos de não consumidores. No RS, as estimativas apontam que essa situação é imposta – ou no mínimo resultado das nossas ações e escolhas políticas – a 950 mil pessoas, numa estimativa conservadora, podendo chegar a 1,3 milhão de indivíduos, da criança ao idoso. Essa parcela significativa de mulheres e homens de, com o perdão do trocadilho, de carne e osso, tem acesso a R$ 89 por mês. Os “aquinhoados” conseguem “mais”, R$ 178.

O estudo, feito em 2021, foi elaborado dentro do próprio governo estadual, capitaneado pelo Departamento de Economia e Estatística (DEE), antiga FEE, que compõe a estrutura da Secretaria de Planejamento, Governança e Gestão (SPGG).

O Brasil é um dos maiores mercados consumidores do mundo em termos absolutos. Mas, na prática, fica restrito a praticamente metade da sua população, que é razoavelmente capaz de manter a roda da economia girando, mesmo que em velocidade baixa. Isso faz com que também seja um dos maiores com potencial de crescimento. E para se ocupar esse vácuo, ou fosso de desigualdades, é preciso olhar, acredito, não somente por um viés economicista sobre os números. Os números, na verdade, falam de pessoas.
Esse é um caso clássico em que um problema pode ser tornar uma solução, ou, talvez, a solução esteja nele próprio: garantir renda a essa multidão que tem tanto direito quanto eu e você de fazer três refeições ao dia, comprar roupas e ir ao dentista, comer uma pizza ou fazer um churrasco, comprar iogurte para as crianças ou levá-las ao cinema. Nada de sobrenatural ou absurdo.

E o seu financiamento pode vir de diferentes fontes – de uma reforma tributária justa, do pagamento proporcional entre quem possua rendas e ganhos dignos desse nome, da redução dos bilhões gastos com renúncias fiscais.  O fato é que sem renda não há consumo. A matemática é simples demais para ser ignorada.
A concessão de uma renda básica como política de estado – não de governo -, ampla e inicialmente voltada a todos que se encontram em situação de pobreza ou extrema pobreza é uma possibilidade econômica discutida e aceita inclusive em países governados por autoridades liberais, seja por consciência social ou questões de mercado.

Cada real investido é capaz de gerar outros três nessa complexa cadeia produtiva com ganhos para o emprego, impostos, lucros e dividendos, com menos adoecimento (o que tira a pressão do sistema público de saúde) e melhor aprendizado de nossas crianças (com reflexos diretos no desempenho escolar).

No fim das contas, a responsabilidade não tem um CPF ou um CNPJ apenas. Neste “tribunal”, independentemente do tamanho das responsabilidades, estamos todos. E esse é um debate que precisa ser feito, do poder público à iniciativa privada, das organizações de trabalhadores às entidades patronais. Um debate – com ações concretas – a que nos propomos participar.

Se enquanto sociedade não encaramos a fome como algo inaceitável, um problema cuja busca por uma solução é inadiável, restará nos acostumarmos ao “faz de conta” de que trata-se de uma simples ficção. Mas o prejuízo é coletivo, tendo um peso muito maior sobre os ombros e estômagos dos que estão à margem de um grande sistema chamado vida.

E durma-se com isso.

(*) Valdeci Oliveira, que escreve sempre as sextas-feiras, é deputado estadual pelo PT e foi vereador, deputado federal e prefeito de Santa Maria. É também o atual presidente da Assembleia Legislativa gaúcha.

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