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Nome das ruas – por Orlando Fonseca

“Dar nome é um exercício de poder, não é um tema menor”

Quem dá nome detém o poder. Esse é um princípio tão arraigado na nossa sociedade, que não nos damos conta, em face da sua naturalização, daquilo que nomeamos ou é nomeado e por quem. Segundo a narrativa bíblica do Gênesis, o Todo Poderoso, depois de criar o homem – sim, Adão veio em primeiro lugar – fez passar diante dele os animais para que os nomeasse, e depois o incumbiu de dar nome a tudo o que havia no Paraíso.

O propósito da citação é para buscar em uma narrativa arcaica de nossa tradição judaico-cristã as bases do regime patriarcal vigente no mundo ocidental. Trazendo para o objetivo desta despretensiosa crônica, dar nome às ruas é uma tarefa dos legislativos municipais, incumbência de vereadores.

Consoante o que mencionei acima, o poder político tem sido exercido pelos homens, há milênios, em todas as esferas públicas. Vai daí que há um movimento tomando as redes sociais e já ocupa espaço nos parlamentos pelas cidades do país: já que a imensa maioria dos nomes de ruas vem de figuras masculinas, é preciso uma mudança para que o quadro se modifique.

Noventa anos depois que as mulheres, após uma luta ferrenha, conseguiram o direito ao voto, muita coisa ainda está por fazer para alcançar o equilíbrio quando se trata de igualdade.

Pensando nos argumentos para tratar desse assunto, fui dar uma olhada no mapa da cidade. Tomei como referência o nome da primeira mulher a exercer o mandato de vereadora em Santa Maria, Helena Ferrari Teixeira.

Creio que, sem o Google, não encontraria tão fácil como o é para motoristas e carteiros, acostumados ao ofício de achar endereços. Em um bairro com vários outros vereadores homens, em trechos longos de várias quadras, encontrei o nome histórico, sem demérito aos demais, em uma pequena rua de uma quadra apenas.

Em uma olhada mais pelo mapa, é muito difícil encontrar outros nomes femininos, indicando artérias significativas de nossa cidade. Temos problemas sérios de memória coletiva – basta tentar encontrar informações sobre a nobre vereadora citada, como exemplo – e se não cuidarmos dos procedimentos simbólicos, vamos contribuir ainda mais para nossas referências identitárias.

Em nossa retomada de reuniões presencias do Coletivo Memória Ativa, um dos temas que perpassou as conversas foi, justamente, o nome de uma rua, a saber, a Ernesto Beck. Muitas pessoas insistem em acrescentar um “er” inexistente ao nome do nosso ilustre conterrâneo.

Em uma busca que fiz, até mesmo o Google Maps apresenta o equívoco do nome, o que agrava mais a situação. Para completar, há uma placa na Vila Belga, que consigna o referido erro. Mas é importante que se revise, a fim de dimensionar de forma correta a honraria, para o que basta consultar os livros de história da cidade e obter conhecimento da personalidade desse homenageado.

Ele foi o dono das terras que foram cedidas para que passassem os trilhos da ferrovia e a construção da própria Gare. Também uma consulta aos documentos oficiais é recomendável, pois existe a Lei que dá o nome ao referido logradouro, aliás uma das maiores que cruzam o centro da cidade e vários bairros.

Membros do Coletivo já acionaram o dispositivo do Google Maps, solicitando a revisão. Certamente, os herdeiros de santa-marienses com potencial de virar CEP, não gostariam de ver o nome de seus ancestrais escrito de modo incorreto em futuras nomeações de ruas.

Como disse, dar nome é um exercício de poder, não é um tema menor. Por isso sou solidário ao cuidado com a memória da cidade, tanto para preservar a identidade dos homenageados, grafando certo os seus nomes, como dando maior espaço para que se promova a igualdade.

Normalmente se pensa em nomes de mulheres ligadas à educação – e são muitas – mas há, na história de construção de nosso Município, nomes significativos no comércio, na área da saúde, nas ciências ou nas comunicações.

O que falta, mesmo, é uma consciência para além dos ranços ancestrais que permeiam as relações enraizadas na herança patriarcal da nossa sociedade. Algo que não é difícil de se modificar, quando existe boa vontade política.

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

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2 Comentários

  1. Já na questão pontos de referencia, algumas ruas tem numeração das residencias totalmentes esculhambadas. Ruas não foram totalmente abertas e não serão mais, vide Araujo Viana. Olhando no mapa a rua Francisco Manoel (dois ilustres desconhecidos diga-se de passagem) é paralela a ela mesma. Ruas pequenas e secundarias. Alás, descendo a Duque, na subida antes da Medianeira e dobrando a direita fica a Felipe de Oliveira. Abriu uma imobiliaria na esquina. Rua estreita e com estacionamento dos dois lados. Quem quer escapar da sinaleira se lasca porque ficou dificil o transito por ali. Não sei porque lembrei do Planet Hemp ‘Quer me prender só porque eu fumo cannabis sativa na cabeça ativa, na cabeça ativa.’

  2. Patriarcado não é coisa só do ocidente. Regras tem exceções, mas as origens do patriarcado reside no simples fato de que o poder nos primordios estava ligado a força fisica. Caça e combates. Adão dando nome aos bois pode ser uma narrativa, mas existe mais de uma interprestação, alguém escreveu o livro ( a Biblia é uma biblioteca) do Genesis e queria afirmar que nomenclatura é uma convenção social. Basta não partir do pressuposto que os autores eram primitivos supersticiosos. Nome de rua é coisa de uma bolha, ao menos aqui na aldeia (onde pode ser observado). Faixa etaria é bem determinada, os mais antigos. Pessoal da politica também se interessa no assunto. Entra no rol das ‘homenagens’ que a maioria não da a menor importancia. Serve tambem para nome de escolas. É so perguntar a 10 pessoas nas ruas, longe do Centro, quem foi Gaspar Martins. Ou José Otão. Mulheres com capacidade cognitiva dentro da media não se preocupam com ‘simbolismos’, com numero de logradouros com nomes femininos. Tem o preço do bujão de gás, da carne e da gasolina para se preocupar.

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