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Sobreviva e deixe queimar – por Bianca Zasso

É sobre “Carvão”, filme de estreia da diretora de curtas Carolina Markowicz

Numa realidade onde fake news se espalham como fogo num dia seco e o que há de pior no ser humano passa a ser discutido na mesa do bar como algo corriqueiro, fica difícil criar um roteiro criativo e crítico. Ter como base a realidade pode ser um ponto de partida interessante, mas sem uma boa dose de imaginação não se chega muito longe. Carvão, primeira aventura em longa-metragem da premiada diretora de curtas Carolina Markowicz, provoca risos nervosos e a nada agradável sensação de que, mesmo tratando-se de uma ficção, tudo que está na tela pode estar escondido embaixo de muitos tapetes que pisamos por aí.

Em cartaz nos cinemas a partir de hoje, após uma boa recepção em festivais importantes como Toronto e San Sebastian e de ser exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Carvão tem como protagonista Irene, interpretada pela sempre inspirada Maeve Jinkings, que toca uma pequena carvoaria no quintal de casa.

Ambientado numa cidade do interior, sem nome, mas facilmente assimilável pelos espectadores, o filme apresenta Irene como uma mulher rude, que equilibra muitos pratos num cotidiano que inclui o pai acamado, o filho Jean e o marido Jairo, interpretado por Rômulo Braga. O cenário transparece a precariedade financeira da família.

Eis que uma proposta feita pela agente de saúde Juracy (uma potente Aline Marta) parece ser a luz no fim do túnel. Em troca de uma boa quantia em dinheiro, Irene deve hospedar um homem em sua casa. Vivido pelo ótimo ator argentino César Bordón, o hóspede tem um empecilho extra que vai além do idioma: sua ficha criminal tem algumas páginas.

Carvão tem poucos personagens, mas todos ganham bons momentos na tela. Camila Márdila, na pele da religiosa Luciana, mostra porque é uma das revelações de sua geração em uma das cenas mais tensas do filme. A direção de atores se mostra orgânica, em especial nos momentos em que os personagens tomam decisões. E o que não falta na trama são reviravoltas, todas apresentadas com uma naturalidade chocante.

A família de Irene, que vai à missa, tem boa relação com os vizinhos e trabalha pesado para pagar as contas, possui um véu que esconde desejos diversos. Seguindo um estilo que já marcava seus trabalhos anteriores, como o ótimo O Órfão, Carolina Markowicz costura os acontecimentos insanos de Carvão com humor e violência em medidas muito parecidas.

Em tempos como os vividos em nosso país nos últimos anos, onde preconceitos e ódios foram revelados sem nenhuma vergonha, Irene e sua turma são um reflexo do absurdo que passou décadas velado nos muitos brasis que existem.

Vale aqui destacar o ator mirim Jean Costa. A infância que ele retrata não é nada romântica. Se encaminhando para a adolescência, o filho de Irene tem a perspicácia que falta em muitos adultos do longa, captando desde o primeiro encontro as possibilidades que a proximidade com o misterioso hóspede de sua casa podem lhe trazer.

Há, é claro, algo de simbólico, pois é no desconhecido que ele encontra a atenção que pai e mãe lhe negam. Tal ausência pode ser apontada como a responsável pelos rumos de Jean, mas a diretora tem o cuidado de não cair na ideia de penalizar alguém. O garoto é um reflexo do universo que o cerca. Nada saudável, mas há de se aprender a sobreviver em terrenos que passam longe do ideal.

A fotografia terrosa, assinada por Pepe Mendes, consegue trazer uma poesia ácida para as mortes do longa. Se elas são muitas ou poucas, cabe ao espectador descobrir. Mais que evitar spoilers, não falar sobre o que acontece em Carvão é permitir que o coração do público dispare ao longo de suas duas horas de duração.

Expor as pequenas corrupções que permeiam a vida de uma cidade aparentemente pacífica e religiosa não é apenas o recheio da trama. Julgar os personagens é fácil em um primeiro olhar, pois o impacto das imagens é grande. Mas basta uma atenção mais certeira, um respirar entre um acontecimento e outro, para entender que diante de um pai que não fala nem ouve, de um desejo que não se pode realizar à luz do dia e de perceber ainda na infância o poder que o dinheiro traz, promove atitudes que não se encaixam no conto-de-fadas que tentam nos vender como uma vida digna.

A dor, o medo, o ódio e a raiva nos movem tanto quanto o amor e a esperança. Carvão joga tudo isso no forno e deixa queimar. Na tela e dentro de nossas cabeças.

Carvão

Direção: Carolina Markowicz 

Ano: 2022

Em cartaz nos cinemas.

(*) Bianca Zasso, nascida em 1987, em Santa Maria, é jornalista e especialista em cinema pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Cinéfila desde a infância, começou a atuar na pesquisa em 2009. Habitualmente, seus textos podem ser encontrados aqui às quintas-feiras.

Observação do Editor: as imagens que ilustram este texto são de Divulgação.

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