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A água que nos afeta não é insípida e muito menos inodora; mas, ainda assim, ela não tem culpa! – por Adriano Figueiró

Em um texto recente publicado neste site, um querido amigo, a quem devo minhas leituras iniciais no materialismo histórico e dialético, afirmava que a água é insípida e inodora. Nada tão longe da verdade, para quem tem lidado há mais de um mês com as águas fétidas das enchentes, que servem de solvente universal para as cloacas da urbanização capitalista.

A água tem cheiro, tem gosto, tem doenças e classe social, pois jamais afetará a todos da mesma forma. Para alguns poucos, é apenas o lucro cessante que precisará ser reposto com o seguro. Para outros, é o fim de todos os sonhos, é a separação entre o corpo e a vida. A vida se foi com as águas, e o corpo, perdido sem a essência que o anima, se põe desolado pela incapacidade de imaginar o amanhã.

A água só atende ao conceito estrito da química, dentro do laboratório, aquele espaço fechado à realidade do mundo, onde a dominação instrumental da tecnociência faz as pessoas acreditarem que podem se transformar em controladoras do universo e da verdade. O risco de passarmos muitos anos entre essas paredes do fabuloso reino das ciências duras é acreditar que a realidade do mundo pode ser reduzida a uma fórmula, e que discutir e defender a luta pela dignidade da vida e do trabalho não representa uma outra dimensão do mesmo problema que arrebenta casas, destrói cidades e plantações e ceifa a vida dos mais desprotegidos.

O olhar dialético não pode tentar compreender o mundo como um amontoado acidental de objetos e fenômenos isolados e independentes, mas como um todo unido, coerente, em que os objetos e os fenômenos são organicamente ligados entre si, dependendo uns dos outros e se condicionando reciprocamente.

Por isso, a tragédia político-climática que arrasou o estado do Rio Grande do Sul neste maio de 2024, não passa de uma outra versão do mesmo processo de exploração da terra, da vida e do trabalho, protagonizado pelos mesmos agentes que extraem da natureza e dos trabalhadores, a riqueza que lhes torna mais do que humanos, talvez (des)umanos.

É isso que transformou a cidade de Canoas, por exemplo, de um apreciado local de veraneio nos anos 30, no maior reduto operário do Rio Grande do Sul nos anos 90, e em um enorme lago de detritos, lamas e sonhos interrompidos em 2024. Foi esse o mecanismo que permitiu que os arrozais de Canoas cedessem espaço aos loteamentos, em um lugar que os guaranis chamavam de “Nictheroy”, emblematicamente traduzido como “águas escondidas”.

Esse mecanismo do capitaloceno, de aceleração da produtividade, intensificação do artificialismo técnico, desumanização e perda da visão sistêmica, responsável pela ruptura da vida, é o mesmo que temos enfrentado há décadas dentro das universidades públicas desse país. Racionalidade tecno-burocrática, produtividade e intensificação, são os valores que se escondem por trás do empresariamento que eufemisticamente tem sido chamado de inovação. Corrói o que nos resta de humanidade para anunciar o império da meritocracia, vendendo serviços e disputando editais em uma corrida cada vez mais acelerada, onde o conhecimento novo e lento é esmagado pela capacidade de reproduzirmos mais do mesmo, em uma enésima potência, que nos torna especialistas em destruir mundos e gentes.

E era exatamente contra esse Chthulu encarnado em antropoceno (apenas para lembrar o personagem devorador de mundos criado por H.P. Lovecraft na década de 20) que nos levantávamos na assembleia docente da semana passada, quando meu antigo mestre nos acusava de pensarmos apenas em causa própria. Jamais, professor! Apenas temos a consciência de que lutar por salário digno, condições de trabalho e por autonomia de pensamento, é uma das poderosas ferramentas que temos para resistir ao pensamento que produz inundações.

Nos ensina Vanda Shiva, que monocultura não é uma forma de produzir, e sim uma forma de pensar; quando a semente de uma única variedade chega à terra, é porque o pensamento do agricultor já abandonou a diversidade, muito antes de iniciar o plantio. Me permito tomar esse paralelo para concluir que a tragédia é a única resposta possível para a monocultura do viver no capitalismo. Existem outras formas sustentáveis de construir a vida? Por certo que sim, mas nenhuma delas é tão espoliativa e geradora de desigualdade como a atual, e por isso elas permanecem em manuais.

Nós, os grevistas, não abdicamos da ação solidária desde o primeiro dia dessa catástrofe, e não apenas porque temos empatia para com os que sofrem, mas porque compreendemos dialeticamente que aqueles que foram afetados pelas águas, compartilham o mesmo futuro daqueles que são afetados pelas outras formas de destruição do mundo, apenas com diferentes intensidades.

No entanto, aqueles que acreditam que a água segue sendo insípida, propõem que voltemos às aulas para demonstrarmos solidariedade aos que tudo perderam. Só a contradição dialética me ajuda a compreender como é que as pessoas acreditam que podemos exercer a solidariedade abandonando os locais onde precisam de nós, para voltarmos a nos trancar entre paredes para ensinar que a água é insípida e inodora. É a brutalidade da teoria que aliena, enrolada em papel de presente com cartão de solidariedade.

Defender a universidade pública, a carreira, o salário e as condições de trabalho, está muito longe de representar um descaso com a catástrofe humanitária, pois, sem isso, estaremos todos à mercê dos senhores das águas, já que as águas, essas sim, não têm culpa alguma.

(*) Adriano Figueiró é professor do Departamento de Geociências da UFSM e integrante do Comando Local de Greve

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