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O “olho roxo” da ex-primeira-dama argentina é a marca da covardia com as mulheres – por Carlos Wagner

Repórter sai da redação e leva os fantasmas, casos que não conseguiu concluir

Matéria que o repórter não consegue fechar vira um fantasma que irá assombrá-lo pela vida (Foto Reprodução)

Lembrei-me de uma reportagem que comecei a apurar e não conclui na década de 80 por conta de ter me envolvido na cobertura de um conflito agrário nos rincões do Brasil. A lembrança me veio no início da semana, segunda-feira (12), quando vi a foto da ex-primeira-dama da Argentina Fabiola Yañez, 43 anos, com o olho direito roxo, que ela atribuiu a uma surra que teria sofrido do seu, à época, marido e ex-presidente da República Alberto Fernández, 65 anos, peronista do partido Justicialista.

Fernández, que governou o país de 2019 a 2023, nega a acusação e diz que o roxo foi consequência de um procedimento estético. Este rolo recém está começando e tem combustível para ocupar por um longo tempo os principais espaços da imprensa.

Não vou entrar no debate do casal a respeito do que exatamente aconteceu por entender que é um assunto que tem o perfil da imprensa diária. Vamos falar sobre um dos seus ângulos, que é um aspecto muito particular na cultura da violência contra a mulher na América do Sul: o significado do olho roxo que descobri em uma apuração que comecei a fazer lá nos anos 80.

Vamos à história. Estava voltando para Porto Alegre (RS) da fronteira do Paraguai com Mato Grosso do Sul (MS), onde estive fazendo a cobertura de um conflito agrário entre os fazendeiros locais e os brasiguaios, como são chamados os agricultores brasileiros que emigraram para o Paraguai – há matérias sobre o assunto na internet.

Ao entrar no território gaúcho fomos parados no primeiro posto da Polícia Rodoviária Federal (PRF) na BR-386, rodovia que liga, ao longo dos seus 550 quilômetros, a Região Metropolitana de Porto Alegre ao oeste de Santa Catarina. O policial rodoviário nos parou para avisar que eu deveria telefonar para a redação do jornal.

Na época, não existiam celulares, e era dessa forma que os editores acionavam os repórteres nas estradas. Fui desviado do meu destino para Passo Fundo, cidade média do interior gaúcho, de economia agroindustrial e com um comércio vibrante, que era apelidada pelos jornalistas de Chicago dos Pampas.

Chicago é uma das maiores cidades dos Estados Unidos, que os roteiristas de Hollywood tornaram famosa ao redor do mundo com filmes como Os Intocáveis (1987), no qual Robert de Niro interpreta o seu mais ilustre morador: o mafioso Al Capone (1899-1947), que durante a Lei Seca (1920 a 1933) montou um império contrabandeando bebidas alcoólicas.

Cheguei a Passo Fundo em um final de dia chuvoso e fiquei por lá uma semana trabalhando em uma reportagem sobre tráfico de drogas. Uma apuração complicada, por envolver gente graúda no mundo do crime. Tenho um roteiro para resolver problemas neste tipo de investigação jornalística. Costumo descobrir quem é o delegado mais antigo na cidade e me aproximo dele. Por quê? Geralmente é o cara que conhece o caminho da roça, sabe quem é quem no crime e as suas ligações com a sociedade local.

Descobri que o delegado mais antigo era um policial ranzinza e mal-humorado. E que trabalhava no plantão. Tive sucesso na aproximação e acabamos ficando amigos. Uma noite, estávamos jogando conversa fora quando chegou à delegacia uma jovem prostituta que tinha levado uma surra do seu gigolô – amante que vivia às custas do dinheiro dela.

A briga tinha acontecido horas antes e um dos olhos da jovem estava roxo em virtude dos socos que tinha levado no rosto. O plantão policial registrou o caso e a encaminhou para a emergência hospitalar. Assisti a toda a conversa dela com o delegado sentando em um canto da sala. No final do registro, o delegado olhou para mim e disse: “É a segunda vez nos últimos meses que ela chega aqui com um olho roxo”.

O que o delegado falou não foi estranho aos meus ouvidos. Na minha adolescência morei em uma pequena cidade no interior gaúcho chamada Encruzilhada do Sul, na Serra do Sudeste. A minha família era pobre e vivia em uma área da cidade onde morava a população carente, as prostitutas, os operários da construção civil e alguns fora da lei. Durante muitos anos vi mulheres levarem socos no rosto dos gigolôs.

Calculei que a história do “olho roxo” que ouvi na delegacia daria uma boa matéria. Consegui convencer o editor que seria legal publicá-la, sempre fui muito bom em “vender o peixe”, jargão usado nas redações para dizer que se consegue convencer que a pauta é boa. Nos anos 80, fazer uma matéria que dependesse de estatísticas era difícil, porque eram raras e as que existiam não eram confiáveis. Na ausência de números, recorri aos policiais que trabalhavam nos plantões das delegacias para ter uma ideia do volume desse tipo de caso de “olho roxo”.

Na época, muito embora a questão da violência contra as mulheres já fosse uma pauta encorpada em vários países, no Brasil o assunto se arrastava devido o golpe militar (1964 a 1985) que censurou a imprensa e impôs limites à discussão das questões sociais. Na metade da década de 80 iniciou-se a decadência do regime militar. E, com isso, o país começou a engatinhar nas pautas de direitos humanos.

Aqui e ali, os repórteres começavam a encontrar pessoas que falavam sobre os problemas nacionais. Na procura por informações sobre a pauta do “olho roxo” tive sorte de encontrar uma fonte, uma pessoa muito bem informada que sabia da história da luta das mulheres contra os seus agressores ao redor do mundo, em particular na América do Sul.

Essa fonte me disse uma frase que nunca mais esqueci: “A história do ‘olho roxo’ sintetiza muito bem a violência contra as mulheres nos dias atuais. Ela não acontece só entre a população pobre. Acontece também na classe média e na alta sociedade”. Saí da conversa muito entusiasmado. A minha ideia era usar a história do “olho roxo” para esmiuçar a violência contra as mulheres na época e especular sobre o futuro.

Mas acabei me enrolado com outras pautas e deixei a matéria de lado. Por ser um repórter especializado em conflitos agrários, crime organizado nas fronteiras e povoamento das fronteiras agrícolas, sempre pintava algum rolo nessas áreas e me mandavam fazer uma reportagem, pouco interessava se estava em férias ou coisa parecida.

A década de 80 foi muito próspera em conflitos agrários. Estive presente em quase todos eles. Ou pelo menos estava sempre por perto. Saía de um conflito envolvendo agricultores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para outro. Em um deles, fiquei mais de 40 dias. O tempo passou e acabei arquivando a história do “olho roxo” na pasta dos assuntos deixados de lado.

Neste tempo, tudo avançou no mundo. Inclusive o combate aos crimes contra a mulher. Mas este de maneira mais lenta do que outros. Por exemplo, foi só em 2021 que o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou por unanimidade que a “legítima defesa da honra” contraria os direitos constitucionais. Até então, muitos réus de assassinatos de mulheres alegavam nos tribunais terem agido em defesa da própria honra e eram inocentados.

Fiz várias matérias sobre este tipo de caso. O que aconteceu com a ex-primeira-dama da Argentina, que alega ter sido surrada pelo seu então marido quando ele era presidente, mostra que a violência contra a mulher continua mais vigorosa do que nunca.

Para colocar um ponto final na nossa conversa. Tenho dito que, quando o repórter sai da redação (eu sai em 2014), ele leva consigo os seus fantasmas, que são os casos que não conseguiu concluir. Vez ou outra, um desses fantasmas volta para assombrá-lo de um caso não resolvido. Foi o que aconteceu comigo com o episódio do “olho roxo” da ex-primeira-dama da Argentina. Entre as coisas que não têm fronteira, a violência contra a mulher é uma das mais importantes.

PARA LER NO ORIGINAL, CLIQUE AQUI.

(*) O texto acima, reproduzido com autorização do autor, foi publicado originalmente no blog “Histórias Mal Contadas”, do jornalista Carlos Wagner.

SOBRE O AUTOR:  Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela UFRGS. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 73 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.

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