Um encontro místico (e terreno) com a dor – por Amarildo Luiz Trevisan
“Uma alma em frangalhos, cercada de políticas públicas que chegam tarde...”

Saíamos de uma reunião com autoridades locais para divulgar nosso curso de Educação a Distância no polo. Estávamos ali: eu, o coordenador do polo e uma colega, ainda discutindo as estratégias de implementação, os desafios das políticas públicas, o que havia dado certo e o que ainda era sonho no papel.
Foi quando ela apareceu.
Atravessou a praça aos gritos, arrastando consigo duas crianças pequenas. O menino mais velho, magro como um galho seco, usava uma máscara no rosto. A menorzinha, de não mais que três anos, vinha de calcinha e nada mais. No calor sufocante daquele dia, ela parecia não entender por que deveria vestir-se como os adultos mandavam.
A mãe – ou talvez apenas mulher em sofrimento, já não sabíamos – carregava uma cesta básica envolta em plástico transparente: arroz, feijão, açúcar, sal. Esses símbolos silenciosos de uma ajuda que, muitas vezes, não ajuda. “Podem ficar com essas crianças, eu não aguento mais!”, disse, de súbito, parando à nossa frente. Sua voz era de desespero e exaustão, como se quisesse entregar não só os filhos, mas também a própria existência.
Perguntei se eram seus filhos. Ela respondeu, entre a raiva e o delírio: “Não sei quem são. Não conheço crianças assim desobedientes!”. A menor, segundo ela, “não queria usar calcinha”. E ali estava o abismo – entre o que ela esperava do mundo e o que o mundo lhe devolvia. Não era só uma crise, era um grito que ninguém ouvia. Uma alma em frangalhos, cercada de políticas públicas que chegam tarde, que não escutam o grito, que distribuem mantimentos, mas não acolhem.
Tentei conversar, mas não houve diálogo. Ela cruzou a avenida, caminhou em direção ao comércio do outro lado da rua, gritando as mesmas palavras, carregando a mesma dor, o mesmo saco com mantimentos. As crianças iam atrás, com a serenidade incompreensível de quem já naturalizou o abandono.
Sugerimos ao coordenador do polo que procurasse o Conselho Tutelar, ali perto. Fomos embora, carregando a cena na memória. Mais tarde, ele me disse que o Conselho foi acionado. Talvez tenham acolhido as crianças. Talvez.
No silêncio do retorno, a cena se misturou à entrevista que eu acabara de dar sobre Ciências da Religião. E então a pergunta me atravessou: o que pode a religião diante disso? E mais ainda: o que pode a mística?
Lembrei de Ernst Tugendhat. Ele separa, com cuidado de filósofo, religião e mística. A religião, diz ele, nasce da necessidade de dar sentido ao acaso, de buscar refúgio nas mãos invisíveis de um Deus. Já a mística… a mística não exige fé nem tradição. Ela é uma atitude interior. Um silêncio que escuta. Um recolhimento que percebe a dor do outro sem precisar de dogma para se compadecer.
Inspirado por Emilio Lledó, Tugendhat afirma que o místico, quando verdadeiramente compreende a relatividade do eu, não pode ignorar a dor do mundo. A mística autêntica é serena, sim – mas também triste. Triste não por si, mas porque se deixa tocar pela infelicidade dos outros. E ali, naquela praça, diante daquela mulher, talvez o que vi tenha sido uma espécie de revelação. A presença crua da dor sem nome. Uma súplica que não cabe nos programas de governo. Um apelo que não se resolve com arroz e feijão.
Sim, a mística talvez possa ensinar algo ao Estado. Talvez as políticas públicas precisem menos de burocracia e mais de compaixão lúcida. A religião, institucionalizada, por vezes se perde entre doutrinas e liturgias. Mas a mística – aquela que se faz amor sem ego, escuta sem juízo – essa continua sendo possível. E necessária.
Aquela mulher seguiu andando e levando nas mãos uma cesta de mantimentos e, atrás de si, duas crianças pequenas como sombras caladas. Talvez, para ela, aquele dia tenha sido apenas mais um entre tantos. Mas em mim ficou algo suspenso. Um silêncio atravessado de perguntas.
Pensei que, se a educação religiosa deseja ainda dizer algo ao mundo, talvez precise reaprender a olhar – mas não com os olhos da doutrina ou da razão apressada, e sim com os olhos serenos e inquietos da mística.
Mas o que significa olhar assim?
Talvez seja ver a dor sem pressa de explicá-la. Escutar o grito sem correr a calá-lo com fórmulas prontas. Talvez seja permitir que o outro nos desestabilize um pouco – como aquela mulher fez, como aquelas crianças fizeram, sem muitas palavras, apenas estando ali.
Será que a mística não nos pede menos certezas e mais presença?
Menos promessas de salvação e mais gestos que acolham?
Porque, às vezes, abrir os olhos não basta. É preciso aprender a ver de outro modo – com olhos que não apenas enxergam, mas se deixam tocar.
E talvez aí, só aí, comece algo que possa, de fato, transformar.
(*) Amarildo Luiz Trevisan é Licenciado em Filosofia no Seminário Maior de Viamão, tem o curso de Teologia, é Mestre em Filosofia pela UFSM, Doutor em Educação pela UFRGS e Pós-doutor em Humanidades pela Universidade Carlos III de Madri. Desde 1998 é docente da UFSM. É professor de Ciências da Religião e vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFSM).
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