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A Santíssima Trindade da aposentadoria: eu, a diocese e o INSS – por Amarildo Luiz Trevisan

“Procure a instituição empregadora.” Em linguagem celestial: “vai com Deus”

Outro dia resolvi encarar um daqueles ritos de passagem que a vida reserva aos que já deixaram de ser jovens há algum tempo: a contagem do tempo de serviço para aposentadoria. Inocente, pensei que seria um processo sereno, quase espiritual. Afinal, tratei de almas, estive em paróquias, servi com afinco. Mas logo descobri que o caminho para o descanso digno não passa pelo céu – passa pelo INSS. E lá não há anjos, apenas protocolos.

Foi assim que me vi voltando no tempo, lá para 1983, quando morei na Casa Paroquial de Jussara – uma espécie de república ecumênica composta por mim, Itamar, o Pe Henrique (um italiano que amava vinho e conversas longas) e, mais tarde, o Pe Tiago, um francês que rezava com sotaque e tomava café como quem faz penitência. Uma convivência harmoniosa, entre o fogão à lenha e os boletins da pastoral.

Mas, enquanto eu e os padres plantávamos fé nos corações do povo goiano, alguém na contabilidade da Diocese aparentemente semeava confusão. O registro do meu tempo de serviço como Agente de Pastoral foi riscado da minha carteira de trabalho – talvez uma penitência contábil, talvez um exorcismo burocrático.

Décadas se passaram, e agora, prestes a receber a auréola da aposentadoria, percebi que aquele rabisco do passado virou um obstáculo do presente. Fui até o INSS em Santa Maria esperando compreensão. Saí com um protocolo e uma recomendação: “Procure a instituição empregadora.” Ou, em linguagem celestial: “vai com Deus.”

Acionei então meus santos intercessores: o prof. Luiz Antônio Gomes, colega de fé e caminhada, que mora em Itaberaí e ainda guarda lembranças daquela epopeia pastoral. Ele, como bom samaritano, contactou o contabilista da Diocese, que mandou a missão: encontrar uma ata, um bilhete, um rabisco em papel de pão da Paróquia de Jussara que ateste minha existência pastoral naquele tempo.

Disposto a tudo, até pagar retroativamente o INSS e oferecer vela para Santo Expedito (padroeiro das causas urgentes e dos desesperados), escrevi para a paróquia. Não peço um milagre. Só o reconhecimento de que um jovem gaúcho, em 1983, andava de bicicleta pelos bairros de Jussara com a Bíblia embaixo do braço e um desejo sincero de transformar o mundo – ou pelo menos aquela diocese.

Hoje, cá estou eu: professor universitário, quase aposentado, tentando provar que existi – não só nos corações e nas missas, mas também nos registros oficiais. Se eu conseguir, será uma vitória da fé, da memória e, principalmente, da paciência.

E se não conseguir? Bem, paciência também é uma virtude cristã. Mas confesso que, no fundo, espero que a justiça divina toque o coração de algum arquivo paroquial esquecido numa estante empoeirada de Goiás.

Porque se até São Tomé precisou ver para crer, por que o INSS seria diferente?

(*) Amarildo Luiz Trevisan é Licenciado em Filosofia no Seminário Maior de Viamão, tem o curso de Teologia, é Mestre em Filosofia pela UFSM, Doutor em Educação pela UFRGS e Pós-doutor em Humanidades pela Universidade Carlos III de Madri. Desde 1998 é docente da UFSM. É professor de Ciências da Religião e vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE/UFSM).

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5 Comentários

  1. Resumo da opera. Felizardo ainda vai conseguir se aposentar. Com regras melhores do que os que entraram depois de 2019. Na iniciativa privada a piramide vai ser desmontada. Quando não se sabe, mas a curva demografica não deixa escapatoria. Com o aumento do salario minimo instituido por este governo (se esbalde hoje para ficar sem ter o que comer amanha) em breve nova reforma da previdencia.

  2. ‘ Inocente, pensei que seria um processo sereno, quase espiritual.’ Brasil não é um pais europeu onde os registros da população são feitos há muito mais tempo e os problemas foram todos depurados. Alem disto culturalmente herdou a burocracia bizantina via Portugal e o direito romano que veio do oriente.

  3. Por partes como diria Elize Matsunaga. Jussara em Goiás atualmente tem menos de 20 mil habitantes. Como deveria ser a contabilidade de uma paroquia ha mais de 40 anos atras?

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