A guerra do homem – por Bianca Zasso
Que a vivência de uma guerra muda um homem para sempre não é novidade. Também não é de hoje que as telas mostram histórias de quem passou pelas trincheiras e nunca mais teve o mesmo olhar sobre o mundo.
O diretor japonês Masaki Kobayashi usou sua sensibilidade para surpreender o público no final dos anos 50 ao dar início a trilogia Guerra e Humanidade, lançada no Brasil em DVD pela distribuidora Obras-Primas do Cinema em versão remasterizada. Mais que uma trama ambientada na Segunda Guerra Mundial, a obra-prima de Kobayashi é a jornada de uma alma que perde seu brilho a cada barbárie que presencia.
Guerra e humanidade não é para os fracos. Suas quase 10 horas de duração, divididas em 3 filmes, não são exagero artístico. Aliás, Kobayashi é admirador das sutilezas e consegue mostrá-las mesmo quando seu material de trabalho é denso e violento. A atmosfera construída por ele se mantem do primeiro ao último plano, num crescente de empatia pelo protagonista que acontece sem truques baratos. Isto porque Kaji pega o público pela mão e convida para caminhar ao seu lado.
Mais que narrador, o personagem de Tatsuya Nakadai colabora para a experiência de imersão para a qual Guerra e Humanidade foi construído. Tudo começa devagar, com o início da vida adulta, o casamento e o primeiro contato com o lado selvagem do ser humano que Kaji encontra em seus superiores ao se mudar para a Manchúria para organizar um campo de prisioneiros.
A ingenuidade do protagonista, presente no primeiro longa, intitulado Não há amor maior, vai aos poucos desaparecendo de seus gestos e dando lugar a um misto de medo e revolta, que é impresso com nitidez no olhar de Nakadai, um dos mais expressivos do cinema japonês, páreo somente para o genial Takashi Shimura.
Já nos primeiros minutos da segunda parte da trilogia, Estrada para a eternidade, Kobayashi consegue que Kaji mantenha seu caráter, mas sem esconder suas feridas. Não só pela barba crescida e a firmeza ao segurar uma arma, mas pela nova maneira de colocar em prática sua alma pacifista. Se era o discurso que imperava em seus primeiros arroubos em busca de dignidade para os prisioneiros da Manchúria, quem agora fala mais alto é a ação. Acusado de esquerdista, ele cogita desertar e acaba realizando um protesto contra as crueldades sofridas por seus parceiros recrutas.
A fotografia primorosa de Yoshio Miyajima traduz em luzes e sombras toda a revolta de Kaji. Em meio da pólvora e da dor da batalha, Guerra e Humanidade também tem linhas de poesia. A cena em que Kaji pede que sua esposa fique nua próxima a janela para que ele guarde sua imagem na memória é das mais belas da Sétima Arte nipônica.
A parte final, Uma prece de soldado, retrata a derradeira tentativa de Kaji para um mundo melhor. Doente e com suas convicções machucadas pelo que viveu, ele dá seus últimos passos num dos finais mais impactantes dos anos 50. Mesmo já consagrado, estudado e comentado pelos mais diversos vieses, Guerra e Humanidade continua cumprindo sua função de obra imortal e causa arrepios até nos avessos à fotografia em preto e branco e os planos contemplativos dos filmes orientais.
Aula de cinema que não se absorve por inteiro em apenas uma sessão, a produção de Kobayashi nos ensina que não são as medalhas, mas as balas que marcam os peitos dos soldados. As reais e as simbólicas.
Trilogia Guerra e humanidade (Nigen No Jôken)
Ano: 1959, 1961
Direção: Masaki Kobayashi
Disponível em DVD pela Obras-Primas do Cinema
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