O cabelo, o amor e o câncer – por Bianca Zasso
No próximo domingo, muitos estarão festejando o carnaval, outros tantos dormindo o sono dos justos ou lendo e também vai ter gente que vai viver mais um dia, sem alterar a rotina. Esta que vos escreve, e outros tantos desinteressados em confetes e serpentinas, estará diante da TV, conferindo mais uma edição do Oscar. O que nos aguarda é um mistério e já aprendemos que não podemos criar expectativas, nem no amor e nem nos prêmios que abrangem a Sétima Arte.
Mas 2017 reserva pelo menos uma certeza: a de que vários brasileiros acompanharão a cerimônia imaginando que poderia ser o ponto alto da trajetória de Aquarius, filme dirigido por Kleber Mendonça Filho e que, por motivos que nada têm a ver com cinema, ficou de fora da disputa. Injustiça, já ouviram falar? Acontece todo ano, que nem carnaval.
Há tempos queria escrever sob Aquarius. Só que conheço meus instintos e sei que seria impossível um texto imparcial sobre um filme que me tocou tão profundamente e que rendeu análises e debates tão diversos e inteligentes. Fugi da responsabilidade. Fui covarde. Porém, depois que a comissão responsável por indicar um filme para representar o Brasil no Oscar optou por não indicá-lo, num claro preconceito quanto às questões políticas que o filme levanta, algo em mim cansou de silenciar.
E cá estou, rasgando o verbo na parte que me cabe, apesar de ser aprendiz no seu conceito: a do sentimento. Isto porque Aquarius é, antes de crítica social à classe média ou metáfora da luta contra o golpe que nosso país sofreu no ano passado, um filme sobre uma mulher que não procura sua cara metade porque sabe que é inteira e assim se mostra para o mundo. As três partes nas quais o filme é dividido comprovam isso.
Aquarius é um filme de família. A menos que a sua seja como as dos comerciais de margarina, dotada de uma felicidade de plástico e nenhuma picuinha, todos podem se enxergar nas paredes do apartamento de Clara, a jornalista que não arreda pé de seu lar e torna-se a pedra no sapato de uma construtora da cidade de Recife.
Apesar da presença do belo mar que Pernambuco tem, Aquarius não é filme cartão-postal. A protagonista que nos guia mora na cidade e a conhece para além dos pontos turísticos. É a sua casa. O oceano é seu quintal. Este é um dos motivos que movem Clara a não se mudar nem deixar que seu prédio torne-se um monte de entulho para que seja erguido mais um arranha-céu luxuoso e sem um pingo de aconchego.
Os discos de vinil na estante, a rede que embala seu descanso, tudo isso é parte de Clara e não apenas uma decoração vintage, bem ao gosto dos ditos moderninhos. Ela enfrentou um câncer de mama, criou os filhos, experimentou, chorou, gozou, foi feliz e sofreu sob aquele chão, e traz ainda lembranças de quem veio antes dela, como o móvel que pertenceu a sua tia Lúcia e guarda segredos que ultrapassam as gavetas.
O edifício Aquarius é personagem no filme de Kleber, fotografado por Pedro Sotero e Fabricio Tadeu, em tons quentes na parte interna e brilhando seu azul claro sob o sol forte do Nordeste. A trilha sonora é tão elegante e criativa quanto os ângulos de câmera. Taiguara, Queen, Reginaldo Rossi, Maria Bethânia e outras canções que alegram Clara e, é claro, o espectador.
E ainda temos Sônia Braga. Uma das mais conhecidas musas do nosso cinema merece bem mais que um parágrafo sobre este que pode ser o melhor papel de sua carreira, mas espaço é algo que falta nestes tempos modernos. Sob a batuta de Kleber Mendonça Filho, ela faz mais que interpretar. Há toda uma atmosfera quando Clara entra em cena, capaz de nos deixar à vontade ao seu lado, enquanto ela lê no sofá.
Sua independência não se encaixa no estereótipo de pagar as próprias contas e transar com quem bem entender. A cena da discussão dela com a filha, é uma aula de liberdade e bom-humor. Do alto de seus 65 anos, Clara é mais viva e dona de si que a filha, que tem juventude e nada mais. Clara não pretende se encaixar, seja num novo apartamento ou numa nova postura. Resistir é o seu verbo.
Aquarius é um filme de resistência. Daqui alguns anos, será o retrato do nosso tempo. Vamos torcer para que sejamos Claras e que os cupins estejam a caminho do extermínio. E se o prezado leitor chegou até aqui sem entender o título deste texto, mate a pulga atrás da orelha assistindo Aquarius.
Aquarius
Ano: 2016
Direção: Kleber Mendonça Filho
Disponível em DVD e Blu-Ray
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