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Delação não-premiada – por Pylla Kroth

1974, Copa do Mundo na Alemanha, o Carrossel Holandês mostrando um futebol superior aos brasileiros tricampeões. E aparece na pacata cidade de Tapera o famoso “Caminhão do Mobral”, o movimento brasileiro de alfabetização, criado pelo Governo Militar em plena Ditadura, em 1967, e que duraria até 1985.

O povo, descendentes de imigrantes Italianos e Alemães, desconfiados e ressabiados como “cachorro mordido por cobra que tem medo de lingüiça”, recebeu o projeto. Para eles era coisa de desconfiar. Seria uma cilada? Não tinha nada a ver com o método Paulo Freire! Isso era fato. Era de desconfiar. Mas sqn, como dizem hoje nas redes sociais. Teria música ao vivo e lá estava eu, de frente a um show de Rock, por vias de fato foi lá que vi as pedras rolarem pela primeira vez na vida.

O líder da banda era um artista, ator de cinema e músico chamado Rony Cócegas, o mesmo que ficou muito conhecido como o Gavião Cumbica da Escolinha do Professor Raimundo. O cara era sensacional. Cantava Chuck Berry, Little Richard, Elvis, Dylan, e outros medalhões, exceto Beatles. Ao final de suas apresentações, cantava uma música de apenas duas estrofes, o resto eram risadas, chamava-se “A Gargalhada”. Não é que deu pra tirar proveito?

A questão é que assim sempre era por lá, naqueles tempos: quando algo ou alguém ligado a qualquer órgão governamental da época por lá aparecia, a desconfiança e o receio já pairavam no ar imediatamente

E por isso conta uma história que, certo dia, apareceu um “estranho” na cidade, desembarcou na rodoviária e foi direto pra Escola de Ensino Fundamental se apresentando como fiscal do Ministério da Educação. Imediatamente começou-se a desconfiança e todos se perguntando quem de fato seria o cara. Seria do Dops? Mandado pelos militares fazer uma espionagem? Alguém ligado às atividades instituídas pelo AI-5? Que dava poder de exceção aos governantes para punir arbitrariamente os que fossem inimigos do regime ou como tal considerados?

O fato é que o sujeito, depois de apresentar-se à diretora e pedir permissão para tal, dirigiu-se até uma sala onde estava sendo ministrada uma aula de história. “E bota povo desconfiado nisso!” define bem a reação de todos os presentes ao verem “a autoridade” adentrar a sala para assistir a aula. Sentou bem ao fundo da sala, ao lado do Pedro. E Pedro encabulou-se barbaridade.

Não demorou muito, ele perguntou ao Pedro, baixinho, mas com ares de severidade avaliativa: “bom dia, menino… Qual o seu nome?” Assustado, Pedro respondeu tremulo:  “é Pedro, senhor…” Por uns momentos o homem não falou nada, mas em seguida olhou novamente e Pedro pensou: “ai,ai,ai… é agora…”, e dito e feito, o homem dispara uma pergunta a queima-roupa no mesmo tom imperativo: “ Pedro, quem foi que colocou fogo em Roma?” Pedro saltou da cadeira de susto e garantiu em alto em bom tom: “não fui eu, senhor! Juro que não fui eu!”.

Quando acabou a aula, o homem foi pedir explicação à professora, afinal como o aluno Pedro podia responder que não havia sido ele que colocara fogo em Roma? Ao que a professora responde: “Senhor, o Pedro às vezes é um pouco indisciplinado, mas é um menino muito bom. Eu lhe garanto que ele não pode ter feito isto!” Estarrecido, o fiscal vai imediatamente até a sala da direção pedir mais explicações, mas a funcionária da limpeza lhe informa que a diretora havia ido ao banheiro.

Ele resolve esperar, mas o tempo passa, nada da diretora voltar e quando a funcionária vem lhe oferecer um café, ou um copo d’água, e ele não se conteve, atônito, resolveu comentar com ela mesmo o ocorrido: “Aa senhora não vai acreditar, fui assistir à aula de história agora há pouco e resolvi perguntar ao aluno Pedro quem tinha colocado fogo em Roma e ele me respondeu que ele não tinha feito isso! E a professora de história ainda me garantiu que não poderia ter sido ele mesmo!”

A funcionária então olha bem na cara do sujeito e com um ar de defesa ao patrimônio e a cidade, responde: “senhor, conheço bem o Pedro, a família dele, a professora de História e a Diretora agora ausente, e posso lhe afirmar: ele não tem nada a ver com isso!” O sujeito quase teve um treco! Apavorado pegou sua pasta e resolveu se mandar dali sem falar com a diretora mesmo, nem nada, tamanho era seu pavor. Se tocou pra rodoviária como quem diz “deixa eu fugir enquanto há tempo”.

Chegou na rodoviária e deu graças que havia um ônibus que passaria pela Tapera em 30 min, ai ele iria até a cidade vizinha e de lá faria uma conexão pra Capital. Ufa! Respirou aliviado e comprou de imediato a passagem. Dirigiu-se ao bolicho ao lado da rodoviária, a fim de esperar o tempo que restava até a chegada do ônibus. Entra no bar, e, além do bolicheiro, lhe fazia companhia um velho cachaceiro, tipo à toa, sem serventia e bom de fofoca que sempre existe em cidades interioranas, sabe da vida de todo povo.

Este, curioso, vem logo puxar conversa, e assim depois de alguns momentos acabou o fiscal lhe contando da situação que ainda o estarrecia, com pormenores e detalhes, imaginando, o coitado, que decerto alguém teria que entender seu ponto de vista. Pois o velho fofoqueiro escutou tudo calmamente, e no final, largando o copo de cana que bebericava no balcão, fez um gesto para que se aproximasse e lhe cochichou como quem conta um segredo: “Olhe, o senhor não diga que fui eu que lhe contei, mas eu conheço o Pedro, a família dele, a professora, a diretora e até a faxineira, e te cuida do bolicheiro também que ele é gente da mesma estirpe, mas uma coisa é certa: foi ele sim, foram eles todos!”

Nisto vinha chegando o ônibus, e o homem, agora realmente apavorado, correu porta a fora disposto a embarcar e sumir dali o mais rápido possível, mas ainda ouve o velho gritar: “mas não vai nem me pagar um trago pela informação???”, o qual não recebendo resposta olha para o bolicheiro, coloca o dedo sob o olho e diz: “ah, esse não me engana! É espião dos milico, na certa!”

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Um Comentário

  1. Como taperense, reforço a história narrada pelo Pylla, todos os fatos descritos são verídicos, e conheço pessoalmente todas as pessoas envolvidas. Na Tapera essa história foi incorporada no anedotário popular e hoje, como se diz, folclore.
    Grande amigo Pylla, continue com suas crônicas com o brilhantismo como essa , e por vezes lembrando da nossa terra, a Tapera

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