Vingança dúbia – por Bianca Zasso
Adaptar Stephen King. É o sonho de muitos e a conquista de poucos, apesar do garoto de 70 anos nascido no Maine ter centenas de histórias publicadas e ser uma espécie de grife dentro da literatura de horror. Eis que uma das plataformas streaming mais populares do mundo resolve bancar a adaptação não de uma, mas de duas de suas obras e lança-las no mês de outubro para garantir o gancho do Dia das Bruxas. Negócios à parte, o diretor Zak Hilditch optou por uma história mais sórdida que simplesmente assustadora para marcar sua primeira parceria com a Netflix.
1922 é inspirado num conto homônimo publicado na coletânea Escuridão total sem estrelas, e já começa deixando claro que seu protagonista não é nada inocente. Wilfred James, um fazendeiro que coloca a terra acima de tudo, está em um quarto de hotel escrevendo sua confissão: ele assassinou a esposa Arlette com a ajuda do filho adolescente, Henry, para garantir que ela não vendesse os 40 hectares que havia herdado e que garantiriam que ela pudesse começar uma nova vida na cidade grande.
Calcado nas descrições bem feitas presentes no conto, uma das especialidades de King, 1922 não apenas apresenta o crime e suas consequências ao espectador como também constrói uma atmosfera que permite uma viagem pelos desejos mais obscuros dos personagens. Apesar de ter sido o único a cometer um crime, James não está sozinho com seus pecados. Sua esposa tem ambições questionáveis e não mede as palavras ao questionar o próprio filho sobre sua sexualidade.
Henry, honrando seus hormônios em ebulição, faz tudo de forma impulsiva e, apesar de traumatizado com a colaboração no assassinato da própria mãe, parece mais interessado em ficar perto de sua namorada. A tradicional família americana posa para retratos repletos de recato e respeito, mas esconde muita sujeira embaixo do tapete.
1922 não tem um monstro propriamente dito. O fantasma da esposa, acompanhado de centenas de ratos, passa a infernizar James, mas não fica claro se eles são reais ou fruto da culpa que martela o cérebro do personagem. A inteligência do roteiro está em permitir que cada espectador tire suas próprias conclusões. Não há certo ou errado. Mais ainda: não importa a direção escolhida, o medo é garantido.
Tirando a cena em que uma vaca cai em um poço, onde o efeito especial é ridículo, o longa abusa de imagens de cadáveres em decomposição e roedores que parecem brotar das paredes para anunciar que o erro de James não será jamais compensado. Uma espécie de castigo, mas que passa longe da lição de moral. Desde seu primeiro diálogo James esclarece que é um homem calculista e que não houve nenhuma dúvida quando a ideia da morte surgiu em sua cabeça. A suposta vingança de sua esposa morta o assusta, mas não traz redenção.
O roteiro preciso e sem muitas arestas para aparar, talvez uma que outra cena que se repete mais do que deveria, só não salva o longa da atuação fraca de Thomas Jane. Seu sotaque forçado e suas caretas para encarnar um homem do interior tornam seu personagem caricato e dificulta um pouco a identificação com o público. A sorte é que King gosta que seus leitores tenham certo carinho pelo lado sombrio e Molly Parker dê conta do recado tornando Arlette carismática até depois de morta.
Se você gosta de gritar diante de um filme, talvez 1922 não seja uma boa pedida. Aqui o susto acontece devagar, como aquela culpa que tentamos esconder de nós mesmos mas que, quando menos esperamos, toma conta da nossa rotina. Aqui não são as cordas vocais que trabalham, mas os músculos. Seu coração vai bater forte e quem tem medo de ratos deve se contrair bastante. Mas vai valer a pena.
1922
Direção: Zak Hilditch
Ano: 2017
Disponível na plataforma Netflix
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