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A casa no meio da rua – por Pylla Kroth

Havia uma casa na Rua Paul Harris, na Rua Paul Harris havia uma casa, esta casa não tinha chaves, nem “tramelas” e servia de sede para encontros de muitos jovens ativos da cultura pop da Santa Maria dos anos 80. Por ali em discussões infindáveis se idealizaram vários feitos populares de nossa santa aldeia.

Tudo era permitido naquele lugar: sonhar, poetizar, chorar, “desopilar”, imaginar a possibilidades de realizações e criar maneiras de sobrevivência em meio a repressão sofrida pela juventude “vida-louca” e sonhadora por parte da família e também a repressão por parte do governo militar; voar mais rápido que a velocidade do tempo com lucidez, através dos ombros dos amigos, caçando o sol na escuridão, acreditando que havia um poço de água no deserto da vida – afinal somente entre amigos podemos comprovar que a vida pode ser bem melhor- e acreditando em conjunto, em sonhos que poderíamos realizar, ao menos ali podia-se dar porradas no mundo se fosse o caso. Era um lugar, como dizíamos, “para fazer a cabeça dos caretas”! Parecia estar ali a fonte da razão, onde o tempo parecia ser precioso.

Santa Maria era carente desses espaços na época e talvez ainda seja até hoje; e fato é que dali nasceram vários bares e idéias de festas para a galera se divertir e atuar culturalmente.

Tenho uma forte lembrança deste lugar, pois vivi ali um bom tempo de minha juventude e sei que muitos outros, tal como eu, irão lembrar eternamente deste lugar.

A casa foi emprestada para os cabeludos por um senhor de posses, cuja generosidade até hoje não sei ao certo o motivo, a razão exata para que nunca tenha nos cobrado um só tostão de aluguéis. Ele se chamava Dr. Daltro Santos Correia, e mal poderia imaginar quão grande seria sua parcela de contribuição no crescimento de uma geração inteira que então florescia. Pois na verdade, sem saber, ele veio ceder aquele espaço pra um movimento importantíssimo que hoje colhe seus frutos e gerou filhos com mentes saudáveis e colaborativas na evolução do mundo atual.

Quem diria que por ali passariam pessoas de grandes atuações na sociedade de hoje? Reitores, desembargadores, juízes, deputados, prefeitos, doutores, atores famosos, artistas reconhecidos, etc, etc.

Que o diga o atual Pró-reitor para Assuntos Estudantis da nossa querida UFSM que por ali, juntamente a um grupo de amigos, projetou o primeiro bar alternativo da cidade com rock ao vivo, o saudoso Zanzi Bar, de onde brotaram vários talentos da música local, hoje espalhados pelo planeta. Foi neste bar que muita gente boa pôs o pé na profissão, como diz a canção, e eu que o diga! No Zanzi foi criado um palco livre, que funcionava da seguinte forma: quem chegasse no local e soubesse tocar, cantar, recitar poesias ou simplesmente falar e fazer sua manifestação política, por exemplo, tinha sua vez garantida.

O Zanzi era uma fortaleza protegida por todos que o frequentavam, como se estes fossem suas muralhas; por várias vezes a polícia e a repressão tentaram inutilmente fechá-lo, mas as tentativas foram inúteis, e só teve fechamento de suas portas quando as vidas de seus sócios proprietários tomaram rumos diferentes. Com o fim do bar, vários amigos voltaram para a “sede”, ou seja, “a casa da Paul Harris”.

Eram reuniões infindáveis que avançavam madrugadas adentro. Certa vez havia tanta gente que até no teto da casa se encontravam pessoas “empoleiradas”, apreciando o luar sobre a cidade! Várias foram as manhãs em que me acordava com a casa cheia, alguns até forasteiros novatos, estudantes que recém haviam chegado a Cidade Universitária de nossa aldeia.

Como na vida tudo passa e todos somos passageiros, em determinado momento também peguei meu rumo, quando me encontrava bem-empregado com a carteira assinada – isso era tudo em um tempo que carteira de trabalho assinada valia mais que a carteira de identidade, pois o jovem com carteira ganhava o status de cidadão trabalhador e não de “vagabundo”!

Aliás, que saudades desse tempo em que o trabalhador tinha direitos adquiridos por Lei, pois para quem eventualmente não saiba, a carteira de trabalho foi sancionada em maio de 1943 pelo então Presidente Getúlio Vargas, que hoje deve estar se revirando no caixão com as últimas medidas governamentais, piores que  as tomadas por alguns grandes ditadores. Um retrocesso fora do comum. Querem acabar com o direito do trabalhador. Querem colocar todo mundo no mesmo saco e tratar todo trabalhador como se foram vagabundos sem direito a terem direitos. Várias foram as vezes que me escapei de ser punido como vagabundo em função de ter minha carteira de trabalho e assinada desde 1976.

Mas nunca deixei de visitar a dita “casa da Paul Harris”, até ser pedida pelo proprietário para ali dar lugar a um edifício moderno. Teve o dia da festa de despedida da casa. Fechou-se a rua e a casa lotou de gente por dois dias, como se fora “festa de cigano”, e foi um acontecimento inesquecível. Como este escriba aqui era o “responsável” pela casa, fui comunicado pelo filho do proprietário sobre a data em que a casa viria abaixo.

Meu coração apertou, queria eu nem ter recebido tal comunicado, mas mesmo assim resolvi convidar alguns amigos próximos para irmos juntos  presenciar a demolição. Sentamos no outro lado da rua e um deles puxou o violão e lascou a canção de Adoniran Barbosa: “Si o senhor não está lembrado\Dá licença de contá\Que aqui onde agora está esse edifício alto\Era uma casa velha, um palacete assobradado\Foi aqui seu moço, que eu, Mato Grosso e o Joca\Construímos nossa maloca\Mais um dia, nem quero lembrar, veio os homens com as ferramentas\ o dono mando derrubá \Peguemo todas nossas coisas\E fumos pro meio da rua apreciar a demolição\Que tristeza que eu sentia\Cada táuba que caía, doía no coração\Mato Grosso quis gritá, mas em cima eu falei, Os homes está ‘cá razão\Nós arranja outro lugar\Só se conformemos quando o Joca falou\”Deus dá o frio conforme o cobertor”\E hoje nóis pega a páia nas grama do jardim\E pra esquecê nóis cantemos assim:\Saudosa maloca, maloca querida\Que dim donde nóis passemos dias feliz de nossa vida\Saudosa maloca, maloca querida\Que dim donde nóis passemos dias feliz de nossa vida!”

Frequentemente passo pela Rua Paul Harris e em frente ao local onde ficava aquela casa e não tenho como não me emocionar. Que lembranças de um tempo bom onde transformávamos nossos sonhos em realidade. Porque hoje a coisa aqui tá feia, e as perspectivas da nossa juventude estão escassas. Estou com medo do que possa vir daqui pra diante. O jeito e usarmos as nossas mais poderosas armas: AS URNAS. 2018 está chegando. Façamos a nossa parte para um futuro melhor, afinal: “O sonho não acabou”!

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