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Faca amolada – por Pylla Kroth

Assim como o leiteiro, o padeiro, o caminhão de doces e outros, o amolador de facas, ou melhor: o “afiador” de facas, como chamavam lá, fez parte da minha infância. Num repente esse personagem é resgatado em minha lembrança, vindo de um alto e bom som da rua, onde fui visitar um velho amigo. Achei que essa profissão não existisse mais atualmente, onde a cartilha do descartável esta incorporada em nossas vidas. Aquele som agudo e estridente não me enganara. Na última vez que tinha ouvido e visto, eu era muito menino.

Aliás, tenho essa particularidade em mim que adoro: decifrar situações pelo som, inclusive até pouco tempo atrás quando ainda usava botas essa era minha preocupação primeira, “o som das botas”, antes mesmo da cor ou “modelito”.

Fui me certificar e lá estava ele na sombra da calçada de uma senhora de idade avançada, cercado de curiosos. Aquela bicicleta sempre me fascinou, com seus aparatos e “enjambres” necessários para o oficio.

Aos poucos foram chegando mais algumas senhoras com seus faqueiros em mãos para amolar suas preciosidades. A atenção e conversa amável dele com suas clientes era de encher os olhos. O papo não poderia ser outro: “de qual marca é a sua vizinha?” Corneta, Elmo, Aurora, Tramontina, e algumas Alemãs e Francesas, peças raras.

Comecei a lembrar de uma conversa lá no interior na época de alguns assassinatos onde o amolador de facas era o suspeito. A mãe tentava nos deixar preocupados, talvez pra não ficar na rua, “Olha o afiador de facas!”. Tive um amigo que quando ouvia a corneta, flauta ou apito, não sei bem o que ele usava para a anunciação, saía correndo tremendo as pernas de medo do pobre homem.

Eu sempre duvidei dos adultos, se dissessem que era perigoso já bastava para o meu encanto. Ir ao cemitério à noite? Podem acreditar que lá eu iria, e fui, por várias vezes a noite. E confesso que lá é um lugar muito tranquilo e em paz.

Sendo assim fui amigo de vários amoladores de facas, coveiros, padeiros e leiteiros, este último então, leiteiros, eram meus melhores amigos, usavam seus coletes com bolsas para acomodar as garrafas. Em frente às residências interioranas sempre havia uma caixinha pro carteiro e outra pro leiteiro e padeiro, deixavam uma garrafa cheia e levavam a garrafa vazia. Aliás, foi na garupa do leiteiro que andei de bicicleta pela primeira vez, depois pedi carona até pra minha irmã mais nova que ainda não havia sentido a sensação de “andar de bici” – aquilo não terminou bem, pois acabamos por nos acidentar, fato este lembrado até hoje nas rodas da família, pois por pouco ela não perdeu os dedos em meio aos raios da roda traseira, mas isso é outra história.

Mas encontrar um amolador de facas em 2018 foi maravilhoso. Perguntei a ele se passava seguido pela rua, ao que ele me respondeu que não tinha dia nem hora, mas que fazia este trabalho somente em seu território, não se arriscaria ir até o centro, pois temia ser roubado e até mesmo perder sua invenção que lhe acompanha desde 1960 quando aprendeu o ofício. Aprofundei minha conversa e lhe pergunte se ele ganhava bem, e ele me respondeu que dava pra viver com o pouco que faturava: “afinal de contas, pra que me serviria mais dinheiro, além do que preciso pra viver!”

Aquela resposta cheia de sobriedade me veio à cabeça por semanas e confesso que ainda estou refletindo a respeito. Ainda me disse que dinheiro demais fazia mal. “Quero apenas o necessário, somente o necessário”.  Não demora muito e vou virar alimento pro vermes, me disse ele. Sua idade: 86 anos.

O pensamento que me restou desse encontro inusitado não podia ser outro: Ah, como o mundo era bom uns tempos atrás! Nada era descartável. Nem nós. Tudo podia ser amolado de tempos em tempo, feito velhas facas, e voltar a ser tão útil  e afiado quanto quando era ainda novinho em folha!

OBSERVAÇÃO DO EDITOR: a imagem que ilustra esta crônica é uma reprodução da internet.

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