Programa duplo – por Bianca Zasso
Quando a televisão era apenas um sonho e as salas de cinema eram o destino da maioria das pessoas em busca de diversão, havia os chamados programas duplos. Ou seja, dois filmes pelo preço de um. Mas, desde que virou indústria em Hollywood, a Sétima Arte (e os produtores, é claro) não fazia uma promoção assim sem pensar no próprio bolso. Logo, não podiam ser oferecidas duas superproduções e cobrar apenas um ingresso. Um dos filmes sempre era mais barato e mais curto.
Os tempos são outros, a pipoca é uma fortuna e temos que nos contentar com apenas um único filminho. Mas também estamos na época do streaming e das maratonas no sofá. Por isso, a coluna de hoje indica mais que um filme e convida você a desfrutar de um programa duplo que não vai pesar no orçamento.
Na plataforma streaming mais popular destas bandas (sim, eu estou falando da Netflix, caso alguém não tenha percebido), estão disponíveis dois filmes do diretor basco Álex de la Iglesia. Duas peças que apresentam semelhanças, mas trazem ao espectador experiências bem diversas.
Para começar no mesmo ritmo de um típico programa duplo, indicamos clicar em Perfectos Desconocidos. A comédia, lançada em 2017 nos cinemas, deu a Iglesia uma indicação de melhor direção nos Prêmios Platino, uma das premiações mais importantes do cinema latino, e fez uma boa bilheteria. Trata-se de uma refilmagem de Perfetti Sconosciuti, do italiano Paolo Genovese, no qual o diretor de El Dia de La Bestia deu um toque fantástico. Sete amigos, três casais e um solteiro reúnem-se para um jantar exatamente na noite de um eclipse conhecido como Lua de Sangue.
Já seria um bom pretexto para coisas estranhas acontecerem, e Iglesia adora o insólito, mas a história começa a se mover quando Blanca, a novata dos jantares, resolve propor um jogo onde todos devem compartilhar as mensagens e ligações que receberem durante a noite. Logo começam os risos nervosos e as leves crises de ansiedade. São sete amigos, mas os segredos parecem estar em maior número.
As descobertas, que vão da orientação sexual de um dos amigos aos segredinhos eróticos de um dos casais em crise, garantem algumas risadas e a leve fantasia do impacto do eclipse nos acontecimentos da noite faz lembrar que estamos diante de um diretor criativo, com boas referências e que sabe usá-las com sabedoria. Mas há um incômodo no ar e ele não estão nem no elenco, nem na trama.
Quem já teve contato com trabalhos anteriores de Iglesia sabe que ele abusa da caricatura na construção de seus personagens e até mesmo o apartamento com decoração kitsch de Perfectos Desconocidos não está lá à toa. Iglesia tem estilo. O problema é que, dessa vez, ele colocou o pé no freio. O sarcasmo e os exageros que fazem de trabalhos como 800 Balas ou Perdita Durango uma diversão à lá exploitation dos novos tempos, dão lugar a momentos de discussões conjugais que beiram o melodrama barato.
Quando parece que vamos perceber a assinatura de Iglesia, ele usa letra de forma medida com régua. Pode divertir quem se contenta com o arroz com feijão cinematográfico, mas quem já provou a mistura basca de Alex nos anos 90, vai ficar com fome.
Mas daí chega a atração principal. O Bar, também de 2017, é puro Iglesia. Sua semelhança com Perfectos Desconocidos está apenas no formato que une muitos personagens e um único cenário, neste caso, o bar de Amparo, interpretada por Terele Páves (figurinha certa nos primeiros filmes do diretor), localizado no centro de Madri. Se os amigos do primeiro filme tinham um pezinho no comum, em O Bar ninguém foi poupado de excentricidades.
Não se engane com o jeito aparentemente fútil de Elena, a protagonista. Ela, e todos os outros no recinto, não são facilmente decifráveis. Aliás, você não vai perder muito tempo tentando saber os segredos dos clientes quando duas pessoas, em poucos minutos, forem baleadas na cabeça logo após saírem do estabelecimento. O que seria o início do caos em uma Madri movimentada dá lugar a ruas vazias, silêncio, nenhum carro. O pandemônio vai acontecer entre as mesas que Amparo limpa com água sanitária todos os dias.
Em O Bar, Iglesia se esbalda e não poupa o espectador de seu humor ácido, personagens com atitudes bizarras e uma fotografia que colabora para que o terror não more apenas no mero susto, mas esteja presente por todos os cantos. A atmosfera da cena de perseguição final é das melhores coisas que Iglesia fez nos últimos anos e merecia ser mais discutida entre os fãs do gênero, tamanha são as suas referências e a força de sua crítica social, outro ponto que o diretor sabe explorar com inteligência. Isso sem contar o elenco afiado, com destaque para Carmem Machi e Jaime Ordóñez.
Quentin Tarantino e Robert Rodriguez tentaram reviver a época do programa duplo em 2007 com o projeto Grindhouse, formado pelos filmes Planeta Terror e À Prova de Morte. Há quem diga que ambos foram geniais. Mas basta uma olhadinha na prateleira empoeirada, lá naqueles VHSs que fizeram a alegria de quem não se contentava com os lançamentos nas idas à locadora para perceber que disparar referências é fácil. Quero ver é ter tiro certeiro nas escolhas e fazer algo interessante e que não precisa de propaganda para ostentar o título de Filme B no melhor sentido do termo. Iglesia faz isso. Pena que não tenha o mesmo número de fãs ansiosos por seu novo trabalho como um certo americano.
Perfectos Desconocidos e O Bar (El Bar)
Ano: 2017
Direção: Álex de la Iglesia
Disponível na plataforma Netflix
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