“VAZAJATO”. Sob a Lava Jato, Deltan fez planos para lucrar com palestras, mostram The Intercept e ‘Folha’
Do versão online brasileira do jornal espanhol EL PAÍS, em reportagem de FELIPE BETIN e CARLA JIMÉNEZ, com foto de FÁBIO RODRIGUES POZZEBOM (Arquivo Agência Brasil)
A chamada #VazaJato, série de reportagens publicadas pelo The Intercept sobre os bastidores da Operação Lava Jato, ganhou mais um capítulo neste domingo. As mensagens obtidas pelo portal e analisadas em conjunto com o jornal Folha de S. Paulo indicam que o procurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa em Curitiba, montou um plano para poder lucrar com a operação, a partir da fama dos contatos obtidos ao longo do processo. Inclusive chegou a debater no final de 2018 com o procurador Roberson Pozzobon, colega na operação, a possibilidade de constituir uma empresa. Mas, para evitar questionamentos legais e críticas, eles não poderiam aparecer no quadro de sócios. Suas esposas, sim.
“Vc e Amanda do Robito estão com a missão de abrir uma empresa de eventos e palestras. Vamos organizar congressos e eventos e lucrar, ok? É um bom jeito de aproveitar nosso networking e visibilidade…”, escreveu Dallagnol para sua esposa no dia 3 de dezembro de 2018. A lei proíbe que procuradores gerenciem empresas. No máximo podem ser sócios ou acionistas de uma companhia.
Dois dias depois, Dallagnol e Pozzobon criaram um chat com suas respectivas esposas e discutiram o plano detalhadamente. “Antes de darmos passos para abrir empresa, teríamos que ter um plano de negócios e ter claras as expectativas em relação a cada um. Para ter plano de negócios, seria bom ver os últimos eventos e preços”, alertou Dallagnol. Pozzobon então respondeu: “Temos que ver se o evento que vale mais a pena é: i) Mais gente, mais barato ii) Menos gente, mais caro. E um formato não exclui o outro”.
Meses depois, no dia 14 de fevereiro deste ano, Dallagnol mais uma vez propôs que a empresa fosse aberta em nome das mulheres e que Fernanda Cunha, dona da Star Palestras e Eventos, ficasse responsável por organizar os eventos. “Só vamos ter que separar as tratativas de coordenação pedagógica do curso que podem ser minhas e do Robito e as tratativas gerenciais que precisam ser de Vcs duas, por questão legal”, comentou Dallagnol no chat. Ainda alertou sobre a possibilidade de levantarem suspeitas.
— É bem possível que um dia ela [Fernanda Cunha, da Star Palestras] seja ouvida sobre isso pra nos pegarem por gerenciarmos empresa – disse Dallagnol no chat.
— Se chegarem nesse grau de verificação é pq o negócio ficou lucrativo mesmo rsrsrs. Que veeeenham – respondeu Pozzobon.
No dia 3 de março deste ano, Dallagnol comentou em mensagem sobre um convite para dar uma palestra, feito pelo Instituto de Liberdades Públicas e Ensino Jurídico Paulo Rangel. Levantou então a possibilidade de constituir um instituto sem fins lucrativos e, dessa forma, afastar possíveis críticas.
— Deu o nome de INSTITUTO, que dá uma ideia de conhecimento… não me surpreenderia se não tiver fins lucrativos e pagar seu administrador via valor da palestra. Se fizéssemos algo sem fins lucrativos e pagássemos valores altos de palestras pra nós, escaparíamos das críticas, mas teria que ver o quanto perderíamos em termos monetários – afirmou Dallagnol.
— Interessante, Delta. É uma alternativa. Temos que ver se de fato é um instituto sem fins lucrativos, ou apenas instituto no nome… – respondeu Pozzobon.
A Folha afirmou ter feitos pesquisas nos registros na Junta Comercial do Paraná e em cartórios de Curitiba, mas não encontrou nenhuma empresa de palestras em nome das esposas dos procuradores ou algum instituto. A reportagem recorda ainda que o coordenador da Lava Jato sempre chamou a atenção da imprensa por causa de sua rotina de palestras, algo que levou os deputados federais Paulo Pimenta (PT-RS) e Wadih Damous (PT-RJ) a solicitarem a abertura de um procedimento disciplinar no Conselho Nacional do Ministério Público. Contudo, o requerimento foi arquivado porque o órgão entendeu que se enquadravam como atividade docente. Também ressaltou que os recursos das palestras eram destinados a instituições filantrópicas.
A vontade de lucrar com as palestras era algo que incluía também ampliar o conteúdo para angariar novos públicos. Em um trecho das mensagens, Dallagnol sugere criar palestras/cursos para a empresa Conquer, especializada em palestras motivacionais, “aceleradora de pessoas”, segundo se define.
No final do ano passado, ele dá ideias de cursos, como “Turbine sua vida profissional com ferramentas indisponíveis”, “Ética nos Negócios e Lava Jato: prepare-se para o mundo que te espera lá fora”, palestras estas que seriam ministradas a públicos mais jovens. A ideia do chefe da Lava Jato era criar palestras “com uma pegada de pirotecnia”, segundo descreve. “Todas as palestras deixariam um gostinho de quero mais (tempo limitado) e direcionariam pra conquer, com retorno de percentual sobre cada aluno que se inscrever no curso da conquer nos 4 meses seguintes”, afirma.
A polêmica das lucrativas palestras
Palestras remuneradas são práticas comum no meio jurídico por parte de autoridades públicas e em outras profissões”, disse a assessoria da força-tarefa em resposta aos jornalistas. De fato, no Brasil não é segredo para ninguém que integrantes do Ministério Público e do Judiciário, incluindo ministros do Supremo, proferem palestras e colóquios, tanto no Brasil como no exterior. O ministro Gilmar Mendes, por exemplo, não só faz palestras para eventos realizados pelo Instituto Brasileiro de Direito Público, do qual é sócio, como participa de encontros internacionais com esse objetivo. Num deles, realizado em abril em Portugal, até o ministro da Justiça Sergio Moro esteve presente.
Quando era juiz, Moro chamava a atenção pelo número de eventos dos quais participava ao longo da Lava Jato. Um levantamento da Agência Pública mostra que ele deu uma média de uma palestra ou curso por mês entre julho de 2017 e julho de 2018. Nada incompatível com o objetivo de dar visibilidade e buscar apoio popular para as investigações que mexeram com o imaginário brasileiro. Porém, a exposição excessiva lhe gerou alguns questionamentos, como a participação em encontros promovidos por entidades ligadas a políticos. É o caso da palestra no Mato Grosso no dia do lançamento do portal da transparência do Estado, a convite do então governador tucano Pedro Taques. Fez também apresentações no Lide, empresa fundada pelo hoje governador João Doria. Moro falou para o público do Lide – empresários e executivos do mercado financeiro, principalmente — em algumas ocasiões em São Paulo e Curitiba.
No ano passado, aceitou o convite do Lide para palestrar em Nova York, num colóquio que ganhou repercussão pelo fato de o então juiz não ter registrado no sistema de transparência como prevê o Conselho Nacional de Justiça. Em resposta a questionamentos do jornal Valor Econômico, Moro disse que não foi pago por essas palestras. A Agência Pública também informou que a esposa de Moro, a advogada Rosângela Moro, abriu uma empresa de palestras no ano passado.
Com as novas revelações do The Intercept, a promoção das palestras ganham conotação alheia ao foco principal do trabalho como serviço público. Os críticos da Lava Jato levantam também a coincidência com o foco da força-tarefa sobre a empresa de palestras do ex-presidente Lula, vista com desconfiança pelos procuradores e tida como suposta fonte de propina, uma vez que os maiores patrocinadores eram exatamente as construtoras que foram pegas pela Lava Jato. As mensagens estão longe de sugerir qualquer pagamento ilícito por palestras a Deltan e a outros procuradores. Mas a existência de um plano para lucrar com elas entra numa zona cinzenta sobre o foco na justiça de fato e na “pirotecnia” a ser empregada para fazer palestras à luz de um caso ainda em andamento.
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