ARTIGO. Ricardo Ritzel e as degolas que mataram (talvez) milhares de gaúchos nas nossas revoluções
A história da infâmia castilhista
Por RICARDO RITZEL (*)
A degola de inimigos é um capítulo macabro na história do período revolucionário rio-grandense. Macabro e cruel. Autores estimam que, entre 1893 e 1932, mais de mil combatentes, dos dois lados do conflito, foram executados desta maneira nas guerras e refregas gaúchas.
Mas o número total pode dobrar e até mesmo triplicar se contarmos os infelizes “desaparecidos” ou mortos “com discrição” longe do teatro de operações da guerra civil, como recomendava o presidente do Estado, Julio de Castilhos, para seus subordinados.
Como neste telegrama que o líder republicano enviou para o coronel Madruga, em Cacimbinhas (hoje Município de Pinheiro Machado), interceptado pela inteligência federalista.
– “Adversários não se poupa nem se dá quartel. Remeto armas e munições que pede.
[…] o inteiro desagravo da república ultrajada requer que, ultrapassados mesmo certos limites, com as devidas cautelas e discrição, sofram pela eliminação, o justo castigo que merecem […]. Castilhos”.Também entram nessa infame soma os perseguidos políticos que sentiram a faca na garganta durante aquela estranha paz que o Rio Grande do Sul viveu entre uma e outra revolta armada, principalmente de 1895 a 1923.
O certo é que não foi o gaúcho que inventou esse tipo de execução, que desde os tempos bíblicos é usada pela “humanidade” como forma de aterrorizar os inimigos.
Assim como é certo que, desde o século XVII, a gauchada do outro lado da fronteira usou e abusou deste recurso perverso para eliminar seus adversários. Tanto no Uruguai como na Argentina.
Alguns até se tornaram tristemente famosos por isto, como Manoel Oribe, o “Tigre de Palermo“, Juan Manuel Rosas, o “Corta Cabezas” e o general Facundo Quiroga, que tinha como lema e bandeira “sangue, terror, barbárie“.
Todos eles chegaram ao poder, e o exerceram, pela violência e terror. Todos com uma história de crueldade sem igual por estes lados do mundo.
Na verdade, o hábito de matar o adversário cortando a garganta está presente na cultura gaúcha, ou gaucha, desde os tempos coloniais. E foram os próprios exércitos imperiais de Portugal e Espanha que começaram a utilizá-lo com objetivo de dominar pelo medo.
Sepé Tiarajú que o diga, já que tão logo seu corpo caiu morto em Caiboaté, sua cabeça foi arrancada do corpo.
E assim também na retomada das Missões, quando as milícias portuguesas usaram e abusaram desta triste prática para por as mãos, o mais rápido possível, nas terras indígenas reivindicadas por Artigas e Andrés Guasurarí para a Liga de Los Pueblos Libres.
Há também relatos de degolas praticadas durante a Revolução Farroupilha (e não foram poucos casos), mas literalmente esquecidas pela historiografia oficial, já que maculava a vida e a obra de alguns de seus principais líderes. Afinal, não fica bem para ninguém ter degolas no currículo.
E também não foram poucos os paraguaios que sentiram o fio de adagas rio-grandenses no pescoço durante a Guerra da Tríplice Aliança. Na verdade, a simples menção que havia tropas gaúchas por perto deixava em pânico a população daquele país, dividida entre o terror de Estado imposto por Solano Lopez e o tratamento dispensado pelas forças de ocupação.
Consideravam a gauchada como um bando de bárbaros, tanto que chamavam a lendária cavalaria rio-grandense de “Cavalaria Loca” pelas suas arrojadas manobras em combate e também seu comportamento fora da peleia.
Mas foi na Revolução Federalista de 1893 que a prática de degolar foi aprimorada com requintes de pavor. Tanto que até explicações “científicas”, como era costume se dizer na época, surgiram para justificar tão desumano ato.
“O gaúcho é, essencialmente, um criador de gado que tem maestria no manejo de lâminas. E, assim, vê sangue com naturalidade” diziam uns. “Na guerra de movimentos e de poucos recursos, não há condições de ter e fazer prisioneiros. Então, faca na garganta para economizar munição, tempo e alimentos”, concluíam outros.
Foi aí que surgiu também a classificação da degola, conforme a técnica que era utilizada. A primeira era chamada de crioula, corbata colorada ou castelhana: quando a faca passava, com um só corte, de uma orelha a outra do condenado. A segunda, conhecida como brasileira, ou científica, quando simplesmente faziam dois pequenos cortes exatamente sobre as carótidas do vivente, para verem a criatura se debater, alucinada, tentando segurar o próprio sangue.
E, com o domínio dessas duas técnicas básicas, começaram a surgir nomes que se tornaram tristemente famosos, como dos maragatos Adão Latorre, Coronel Furião, coronel Juca Tigre, Cezário Saravia e o uruguaio “El Rengo”, entre outros rebeldes menos conhecidos.
Aliás, não foram poucos que se alistaram nas tropas revolucionárias simplesmente para vingar um familiar ou ente querido morto desta maneira pela repressão castilhista. Talvez por isto, os pica-paus tenham uma lista bem maior de nomes inscritos na triste “arte” da gravata colorada. Afinal, ela era incentivada pelo Estado.
Foi assim com Xerengue, tenente Chachá Pereira, tenente Corbiniano, tenente-coronel João Alves, coronel João Francisco (também conhecido como a Hiena do Caty) e o mais famoso e também o maior degolador da revolta: o general cruz-altense Firmino de Paula.
Até 1893, antes mesmo de o conflito ser deflagrado, Firmino já tinha um longo histórico de violências e atrocidades contra adversários políticos na região do Planalto Médio gaúcho, como nos conta o historiador Rossano Cavalari, em seus livros já clássicos: “Cruz Alta – Ninho de Pica-Paus” e “Os Olhos do General”. Mas foi no Boi Preto, em abril de 1894, que ele foi alçado à fama de o maior degolador da revolução.
A história começa quando chefe federalista de Palmeira das Missões, Ubaldino Machado, reúne uma tropa de cerca de 400 combatentes e toma o rumo de Santo Ângelo.
Nas imediações daquela cidade missioneira, travam combate com cerca de 300 legalistas e os vencem sem muito esforço, deixando mais de 40 inimigos mortos e outros tantos em uma corrida sem igual até Cruz Alta, cidade conhecida como um verdadeiro ninho de pica-paus.
E lá, a Divisão do Norte, que vinha em perseguição a Gumersindo Saraiva, toma conhecimento do fato e também da localização e direção da coluna maragata de Ubaldino.
Na mesma hora, o então coronel Firmino de Paula se separa do grosso da tropa e parte em busca dos rebeldes. No caminho, encontra e aprisiona um piquete de retaguarda de Ubaldino, descobrindo então, o local exato onde suas forças estão acampadas: o Boi Preto, na periferia de Palmeira.
Depois, degola todos os integrantes do piquete maragato e parte em direção ao acampamento rebelde.
Naquela mesma noite, sem saber da iminente chegada de Firmino e sua gente e ainda acreditando no boato que não haveria mais combates e um tratado de paz seria assinado por aqueles dias, os revolucionários promovem um grande churrasco com a presença de mulheres “de vida fácil” e muito trago.
Ás cinco horas da madrugada, o líder pica-pau cruz-altense surpreende um acampamento de “borrachos” e ressacosos e os encurrala abaixo de tiros. No raiar do dia, e com garantias de vida, 370 maragatos se rendem e são amarrados com tiras de couro. Todos são obrigados a assim marcharem até Cruz Alta.
No caminho, os prisioneiros foram sendo degolados e abandonados na beira da estrada para servirem de exemplo a outros rebeldes que ousassem passar perto daquela cidade.
“As mortes não lhe perturbavam, nem os pedidos de clemência de um dos prisioneiros implorando insistentemente para ser solto. Era um primo-irmão de Firmino, Arthur Beck, que lhe serviu de enfermeiro determinada vez em Santa Maria, e que noutra vez, salvou seu filho de uma tenaz enfermidade.
Firmino não lhe dirigiu o olhar, continuou imóvel, como em um êxtase macabro. Segundos depois, acelera o galope do cavalo e, ao se aproximar de seus imediatos, faz o fatídico sinal com a mão direita, cruzando-a pelo pescoço. Mais um lote de prisioneiros seria degolado. Entre eles, Arthur Beck, o seu primo-irmão”, descreveu Rossano Cavalari.
E desta maneira, aos lotes, foram mortos os 370 prisioneiros rebeldes. Trinta perto do Boi Preto; Na Porteira, mais de cem; em Olhos D’Água, próximo a Cruz Alta, outros 140 homens; além de grupos de 10 a 20 prisioneiros que foram sendo deixados pelo caminho com a garganta cortada e cartazes o identificando-os como maragatos. E com ordens expressas de não removerem os cadáveres.
Era exatamente o dia 5 de abril de 1894.
Ao chegar a Cruz Alta, Firmino ainda enviou um cabotino telegrama a Julio de Castilhos, contando detalhes do fato:
“Hoje, às 5 da manhã, bati em combate Ubaldino acampado em Boi Preto, morrendo 370 dos 500 maragatos, muitos deles oficiais […]Não houve mortes entre nossa gente. Coronel Firmino de Paula, comandante da 5ª Brigada da Divisão do Norte.”
Não havia 500 guerrilheiros inimigos e também é difícil imaginar um combate com 370 mortos de um lado e nenhum do outro. Mesmo nas piores condições de guerra.
Firmino ainda veio a colocar seu nome em outro triste episodio da revolução de 1893.
Quando Gumersindo Saraiva é atingido por dois tiros nos campos do Carovi e vem a morrer entre os chapadões da Estância Santiago, hoje Município de Bossoroca, ele foi um dos responsáveis pela exumação do corpo do mais famoso general maragato no Cemitério dos Capuchinhos, sua decapitação e o envio de sua cabeça para Porto Alegre como troféu de guerra para Julio de Castilhos.
E, mais triste ainda, a sua Brigada caçou, maneou e amarrou pelo pescoço cerca de 800 maragatos (entre eles, muitas mulheres e crianças) que desertaram das fileiras revolucionárias logo após a morte de Saraiva. Sem muita demora, todos foram sumariamente degolados em frente a soldadesca ensandecida, também sob suas ordens expressas.
Foi, então, que a fama de Firmino se espalhou pela Pampa. A má fama de degolador.
E está horrenda prática também foi registrada na Revolução de 1923. Mas, em todo, em número bem menor que as de 1893/95. Muito por Flores da Cunha e Honório Lemes, dois dos maiores líderes daquela refrega, coibirem energicamente a degola de inimigos entre suas forças.
Não houve relatos de degolas nas revoluções de 1924, 25 e 26. E pelo menos uma degola durante a Revolução de 1930. Está aconteceu na divisa dos Estados do Paraná e São Paulo, onde forças paulistas faziam uma encarniçada e resistente defesa do território.
Conta a história que, quando combatentes gaúchos conseguiram entrar em uma das inúmeras trincheiras do inimigo, um combatente paulista se rendeu depois da morte de todos seus colegas. Logo depois, foi degolado na frente de seus companheiros de armas que, aterrorizados com a barbárie, saíram em uma fuga tresloucada.
Como era de hábito, o episódio foi “esquecido” pela historiografia oficial. Afinal, é a história da infâmia nas guerras gaúchas.
(*) RICARDO RITZEL é jornalista e cineasta. Apaixonado pela história gaúcha é roteirista e diretor do curta-metragem “Gumersindo Saraiva – A última Batalha”. Também é diretor de duas outras obras audiovisuais históricas: “5665 – Destino Phillipson”, e “Bozzano – Tempos de Guerrra”. Ricardo Ritzel escreve neste site aos sábados.
Observação do Editor: as fotos (de cima para baixo) são de Reprodução (1), do acervo do autor (2 e 4) e do acervo do Museu Júlio de Castilhos (3)
Um artigo que trata sobre degolas na guerra civil de 1893 não pode deixar de citar as degolas do rio Negro em Bagé (atual município de Hulha Negra).
Oi Marcio, já escrevi sobre o Adão Latorre em Hulha Negra. Não quis me repetir. Mas você pode conferir através do link abaixo. Abraço,
https://claudemirpereira.com.br/2020/04/artigo-ricardo-ritzel-e-um-tanto-de-adao-latorre-ele-teria-degolado-300-pica-paus-de-uma-so-vez/
Muito bom.
João Francisco Pereira de Souza, o Coronel Degola, a Hiena do Cati* .
Pouco noticiado, mas Ruanda assistiu degolas não faz muito tempo. Mais recentemente o Estado Islamico usou e abusou da pratica.