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ARTIGO. Ricardo Ritzel e um tanto de Adão Latorre. Ele teria degolado 300 “pica-paus”. De uma só vez

Monte de gente na foto, menos Latorre. Na imagem, do Acervo da Biblioteca Nacional, estão Majores Fritz e Gardino, capitães Estraubel e Dionísio, tenente Alfredo e cabo carrasco Sebastião Juvencio (o degolador). Vítima degolada ? Não se sabe quem, exceto que não é Latorre

A história de Latorre e a faca de Adão

Por RICARDO RITZEL (*)

O período revolucionário rio-grandense (1893 – 1930) é lembrado, antes de tudo, pela degola simples e sumária do inimigo. Uma prática utilizada em larga escala, tanto pelo lado governista (chamados de pica-paus e, depois de 1923, chimangos), quanto pelos rebeldes maragatos.

È certo que os seguidores do presidente do Estado, Julio de Castilhos, seguiram a risca a sugestão do chefe escrita em uma carta enviada a um correligionário, que depois foi interceptada e divulgada pela inteligência federalista: – “O inimigo não se poupa nem na honra, nem na propriedade, nem na vida. E com a devida discrição”. O objetivo era esmagar a oposição através de um Estado de Terror.

Mas o resultado não foi bem o esperado, já que as forças maragatas, com sede de vingança, começaram a devolver as mesmas atrocidades com uma ferocidade ainda maior. Tanto que, em um determinado momento do conflito, boa parte das tropas revolucionárias era composta por pessoas que não estavam interessadas em política, e sim em vingança pura e simples de um ente querido morto pela repreensão castilhista.

E, certo também, é que o primeiro nome que vem a mente a qualquer referência a este triste período da história do Rio Grande do Sul é do tenente coronel maragato, Adão Latorre, um ex- escravo fugitivo do Brasil que ainda muito jovem encontrou abrigo e trabalho nas terras da família Tavares, no Uruguai.

Mas, afinal, quem era este personagem?

Que Adão Latorre, degolou gente, sabemos que sim. E com certeza. Mas não todos os 300 pica-paus de Rio Negro que estão em sua conta desde a Revolução de 1893 e vem sendo contados, desde então, em prosa e verso pelos mais diversos autores da literatura de ficção gaúcha.

E que fama o negro Adão pegou!

“Degolador do Rio Negro, Carniceiro da Lagoa da Música, Homem da Faca de Prata, Monstro de Hulha Negra, Besta Federalista e Açougueiro Maragato” são alguns entre outros predicados e adjetivos com o mesmo sentido que há mais de 100 anos são associados ao revolucionário federalista.

E ela começa nas margens do Rio Negro, na localidade de Hulha Negra, perto de Bagé, exatamente no dia 23 de novembro de 1893, logo após um sangrento combate entre as forças rebeldes de Joca Tavares e a tropa legalista do general Isidoro Fernandes.

Dizem a lenda e os jornais do governo da época que, logo depois de levantarem a bandeira branca da rendição, cerca de 300 prisioneiros legalistas foram colocados em uma mangueira de pedra e, um a um, foram degolados por um Latorre completamente ensandecido em um ritual macabro que durou toda a noite. Dizem.

Estudos confiáveis recentes, além do resgate do depoimento de testemunhas oculares dos fatos, apontam para apenas 26 degolados naquela localidade perto de Bagé, sendo que, destes, somente oito foram passados na faca pelo famoso tenente coronel maragato.

Os números de 300 eram na verdade o total de mortos pica-paus na batalha que antecedeu a famosa chacina (275), somados aos 26 executados.

Além disto, relatos apontam que 25 dos executados eram todos assassinos mercenários contratados pelo tristemente famoso coronel Pedroso para perseguir, caçar, torturar, roubar e matar oposicionistas do governo de Julio de Castilhos. O vigésimo sexto foi o próprio coronel.

E, mais: antes do início do conflito, Adão Latorre havia deixado sua esposa e filha na casa de seu pai, no Departamento de Rivera, Uruguai. Pouco depois, o local foi descoberto e atacado pela milícia do coronel Pedroso. O octogenário pai do revolucionário foi barbaramente torturado e obrigado a assistir sua nora e neta serem violentadas por todo bando e, logo após, todos foram sumariamente degolados.

Dizem que os oito envolvidos neste crime foram exatamente os mesmos que Adão Latorre passou em seus pescoços o fio de sua famosa faca e este diálogo entrou para história do Rio Grande do Sul.

– “Quanto vale a vida de homem valente, Negro Adão?”, questionou o coronel quando levado a frente de seu carrasco na mangueira de pedra.

– “Valente até pode ser, mas tua vida não vale nada na minha mão e vai para o fio da minha faca!”, teria dito o maragato.

– “Então corta, maragato FDP, corta!” gritou o coronel Pedroso, já levantando o pescoço para facilitar o trabalho do degolador. E assim foi feito.

Com certeza também, cerca de 80 prisioneiros pica-paus foram libertados pelas forças revolucionárias em Hulha Negra. Alguns incorporaram nas forças de Joca Tavares. Outros, com a promessa de não voltar à luta, retornaram sãos e salvos aos seus lares. Muitos não cumpriram seus juramentos.

O certo é que, a partir daí, toda maquina de propaganda castilhista explorou ao máximo a figura de Latorre como degolador contumaz. Talvez por ele ser negro, pobre e agregado de Joca Tavares desde a infância. Ou seja, leal ao extremo com seu chefe.

E mais certo ainda é que, naquela época, o posto de tenente-coronel não era outorgado a simples degoladores, e sim para guerreiros que se diferenciavam em batalhas, e muito. Assim também como não se encontra qualquer outro relato de degola creditado ao negro Adão em livros de História sobre o conflito federalista de 1893-95. Só na ficção.

Adão Latorre foi fotografado, em 1923, momentos antes de morrer fuzilado do Combate do Santa Maria Chico, em plena carga de cavalaria

Adão Latorre morreu fuzilado em plena Batalha do Santa Maria Chico durante a Revolução de 1923, quase nonagenário. Ele participou do conflito de 93, além de inúmeras revoluções, patriotadas e refregas em território uruguaio, sempre sob ordens do general Joca Tavares ou Aparício Saraiva.

E a mais célebre fotografia de uma degola é também uma “barriga” jornalística (ou fake news castilhista) quando apontou por muito tempo o tenente-coronel maragato como carrasco de prisioneiro legalista. A foto lá de cima foi tirada em Ponta Grossa, Paraná, em 1894, mas o gaúcho (ou oriental) Latorre não está nela.

(*) RICARDO RITZEL é jornalista e cineasta. Apaixonado pela história gaúcha é roteirista e diretor do curta-metragem “Gumersindo Saraiva – A última Batalha”. Também é diretor de duas outras obras audiovisuais históricas: “5665 –Destino Phillipson”, e “Bozzano – Tempos de Guerrra”. Ricardo Ritzel escreve neste site aos sábados.

BIBLIOGRAFIA: – Revolução Federalista, de Moacyr Flores e Hilda Agne Flores, Martin Livreiro Editora, 2016

– Fronteira Rebelde. John Chasteen – Editora Movimento – 2003

NOTA DO EDITOR. As fotos que ilustram esse artigo são uma reprodução da Internet (com Latorre pouco antes da morte) e do Acervo da Biblioteca Nacional (a da degola)

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