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Céu fincado nos parabrisas – por Márcio Grings

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Olha para o céu e vê uma nuvem cor de chumbo inflando sobre sua cabeça. Como se fosse um câncer maligno se espalhando rapidamente pelo firmamento. Sem traços de piedade ou misericórdia, algumas gotas graúdas de chuva caem metralhando as pessoas pelas calçadas abaixo. Uma delas de espatifa na aba do seu velho boné esfiapado da Howel’s e respinga fragmentos molhados nos seus olhos semicerrados. Passa a mão no rosto e tá tudo certo? Claro que não! Vento e cheiro de mofo.

Chuva aumenta até materializar cascatas torrenciais a beirada das botinas úmidas daquele pobre diabo. Céu fincado nas imagens de uma dezena de parabrisas dos carros estacionados na Rua Venâncio Aires. Uma estranha luminosidade desce por uma brecha que parece ter rachado algo lá em cima. Alguém sempre faz uma merda e tenta esconder debaixo do tapete.

Um breve arco-íris relâmpago surge e desaparece tão rápido quanto evolui. Apenas uma miragem urbana. Puxa a carteira de cigarros e retira um último pito do invólucro. Para debaixo de uma marquise e divide espaço com um raquítico cusco pulguento. Baforadas de fumaça interagem com a névoa que brota dos bueiros. A dança dos guarda-chuvas coreografa com o pisca-pisca das luzes dos automóveis no asfalto melequento. Poderia tomar um café ou comer algo em algum lugar. Quem sabe.

Talvez seja melhor não fazer isso. Esse esquema de vender o almoço pra garantir a janta, não ‘tá rolando. De todo modo, é engraçado esse troço dele não sentir fome. Pode ficar horas sem comer nada. Quando o estômago ronca encara aquilo como algum tipo de manifestação sem nenhum tipo de importância. Também não bebe água com muita frequência. Percebe que sua pele está mais enrugada, como se nos últimos dias tivesse envelhecido alguns anos. Precisa fazer um novo furo no cinto.

Pensa em despedidas e o céu visto de dentro do parabrisa de um carro. Nuvens, luzes da cidade dando adeus e a estrada dizendo olá.

Enquanto dá a última tragada olha para o vazio como se buscasse algo tangível. Encontra apenas o vácuo das suas lembranças. Não tem nada de produtivo por lá. Amassa o papel e o celofane da embalagem de Marlboro e joga-o no chão como aquele gesto fosse uma forma de protesto contra o atual estado das coisas. O cão dá uma farejada pra sacar se aquele lixo não é algo que possa ser comido. Dá uma tristeza de ver a desolação do animal quando saca que não foi dessa vez. É. Realmente não foi dessa vez. Dá um chutezinho na bunda do bicho com o bico da botina. O cachorro não dá um único gemido, não protesta e fica completamente imóvel, como se aquele homem não estivesse ali.

Coloca as mãos no bolso e resolve encarar a chuva.

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