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10 anos da tragédia, 10 anos de clamor por justiça – por Valdeci Oliveira

“O que vi e senti não desejo nem mesmo ao mais inescrupuloso dos homens”

Naquela noite, uma década atrás, eu dormia em um quarto de hotel em Santiago depois de um dia de intensa atividade e encontros políticos. Era madrugada e meu sono já havia sido interrompido diversas vezes por um incômodo que eu acreditava estar ligado ao cansaço do corpo e da mente. Ao ouvir um som que identifiquei ser um bater de asas junto à janela do quarto, levantei para espantar o que eu acreditava serem pombos. Porém, ao abri-la, nada encontrei.

Voltei para a cama e o sono, assim como os pombos imaginários, havia ido embora, deixando em seu lugar uma angústia e ansiedade inexplicáveis. De pronto, o telefone tocou e um frio subiu pela espinha e um peso se instalou no estômago. Do outro lado da linha a notícia: naquele momento ocorria um incêndio de grandes proporções na boate Kiss, em Santa Maria, lotada por jovens que lá foram em busca de diversão.

Sem tempo para raciocinar direito, perguntei sobre a minha filha mais velha, cujos planos naquele sábado incluíam participar da festa. Por motivos que aqui não interessam, ela não foi. A partir daquele momento as cenas são um pouco confusas, lembro apenas que, trêmulo pelo nervosismo, me vesti rapidamente, joguei água no rosto e tudo que tinha dentro de uma bolsa, fechei a conta da hospedagem e rumei para Santa Maria. Enquanto fazia ligações atrás de mais informações, pedia ao motorista que fosse o mais rápido possível.

Nas horas seguintes, o que vi e senti não desejo nem mesmo ao mais inescrupuloso dos homens. Apenas afirmo que testemunhei cargas homéricas de dor e de desespero diante de uma tragédia que poderia ter sido evitada. Passados dez anos, as imagens ainda povoam minha mente como se ontem elas tivessem acontecido. Quando sou questionado a respeito, minhas respostas carregam junto a tristeza, a incredulidade e a revolta. E que apesar de fortes, sei que não chegam nem perto da real dimensão vivida pelos pais e mães que perderam parte de si para sempre e que continuam na busca por apoio, consolo, respostas e justiça.

Hoje, 27 de janeiro de 2023, uma data que chamamos de “fechada”, o Brasil estará lembrando de tudo aquilo e ainda não compreendendo, não aceitando. São inúmeras as matérias de jornal, rádio e TV, especiais e séries a respeito, refazendo o acontecido, entrevistando vítimas, mostrando a cronologia, o desfecho, o interminável calvário percorrido por homens e mulheres que continuam esperando que a chamada “justiça dos homens”, mesmo não trazendo de volta aqueles e aquelas que se foram, seja feita. E o querer “Justiça”, juntamente com a eterna saudade, foi a única coisa que lhes restou.

Em respeito a dor das mães, pais, parentes e amigos das 242 almas inocentes que perderam suas vidas, não vou aqui descrever em minúcias o quadro de horror que me deparei quando entrei na boate nas horas que se seguiram, imagens que ficaram coladas à minha mente e que lá ficarão pelo resto dos meus dias. E também, pelo resto dos meus dias, serei eternamente grato por hoje ainda poder abraçar minhas filhas, gesto simples que foi compulsoriamente retirado do alcance de centenas de outros pais.

A esses pais e mães, que caíram em depressão, que perderam a vontade de viver e que precisaram se reinventar para continuarem vivos, minha total e completa solidariedade, meu profundo e sincero respeito e minha firme disposição para continuar na luta, seja ela política, institucional ou como cidadão, para que conquistem o necessário conforto dos seus espíritos e que a justiça, em seu mais amplo significado prático, venha a acontecer.

Da mesma forma, continuarei – mesmo diante das derrotas já impostas pelo poder do lucro e dos interesses escusos e inconfessáveis – me somando aos movimentos de resistência contrários à desfiguração da Lei Kiss, tão vilipendiada e flexibilizada nos últimos anos. Aliás, terem desfigurado a legislação demonstra que nós, enquanto sociedade, não aprendemos nada com essa evitável tragédia.

Por mais que eu respeite as posições contrárias às minhas, fazer com que a Lei Kiss – que foi muito discutida, pensada e elaborada para que algo dessa envergadura nunca mais se repetisse – fosse reduzida em seu poder de garantir a segurança das pessoas é algo que classifico como inconcebível, como injustificável. A proteção da vida não merece tamanho descaso.

E esse compromisso de resistência faço em nome de cada um e cada uma das nossas “crianças” que não voltaram para casa depois daquela noite. Uma noite que teima em não terminar, uma noite que apertou nossos corações para sempre, uma noite que não trouxe o raiar do dia. Uma noite que, junto à impunidade, trouxe apenas a tristeza, a dor e a saudade eternas.

(*) Valdeci Oliveira, que escreve sempre as sextas-feiras, é deputado estadual pelo PT e foi vereador, deputado federal e prefeito de Santa Maria. É também o atual presidente da Assembleia Legislativa gaúcha.

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