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Uma noite igual a tantas outras – por Márcio Grings

márcioApesar de tudo ser tão previsível, dá pra dizer sem medo que essa é uma daquelas noites de verão que beiram a perfeição. Luminosidade e melancolia dialogando forte. Há um silêncio quebrado apenas pelo tritino de uns poucos grilos insistentes. Antes de abrir a porta, olha para o céu e enxerga a lua bem em cima da sua cabeça. Tem a impressão que um dia aquela gigantesca bola de néon vai se espatifar no chão. Na verdade, tem certeza disso. Mesmo assim, ele gosta de vê-la ligada na tomada do espaço como um letreiro de boate.

Já o vento respira tranquilamente, meio que simulando um ventilador de teto ligado no mínimo. Ah, o inspirador hálito noturno! Naquele familiar fim de mundo, tudo parece flutuar profundamente na eternidade, menos a brisa que denota o cheiro de flor de gengibre, algo que nos lembra de que estamos em janeiro. Ao girar a fechadura, uma das gatas cruza por debaixo das suas pernas e foge para a sala. Não se importa. Deve ter raposa visitando o teto, quase certo que algum bicho descobriu aquele buraco da madeira apodrecido junto à área dos fundos. Sempre que ele adentra a casa, depois de um tempo fechada, percebe uma discreta catinga selvagem misturada ao budum da poeira e ácaros parasitados aos livros e LPs.

Precisa providenciar algo pra comer. Abre a geladeira e retira de lá uma daquelas pizzas prontas. Dá uma incrementada picando tomate e cebola sobre a ‘santa refeição cancerígena de toda a noite’. De todo o modo, esse será o jantar que o salvará de dormir com o estômago roncando. Em vinte minutos vai sentar à mesa e estrebuchar maionese & ketchup naquele emaranhado de massa fermentada de farinha de trigo e recheio semiartificial.

Sente um arrepio repentino ao entrar no banheiro. Sua imagem no espelho o encara de um jeito estranho, quase ameaçador. Muitas vezes sabe que é assombrado por coisas que acumulou e fez ao longo dos anos. O seu Cosmo interior conspira nessas lembranças aparentemente adormecidas. Não tem jeito; todo esse somatório se materializa nos objetos ou sensações. Noite após noite, tem a nítida impressão que há uma legião de fantasmas o observando. Não sente medo deles, bem pelo contrário, pois, de alguma forma há um companheirismo mútuo nessa estranha relação entre o físico e o espiritual. Compreende que toda trupe de desajustados se ajuda. E se ajusta. Bem, talvez não… E assim, o sol sempre volta a brilhar no outro dia. Isso quando não amanhece chovendo.

Abre a porta da frente. Poucos instantes depois, atraído pela lâmpada, um gafanhoto fica enredado na tela que protege a entrada de insetos para dentro da sala. Do lado oposto da rede esverdeada, a gata tenta caçá-lo. Não consegue. Apaga a luz e vê o brilho da lua envernizando um pedaço da área da frente. E assim, através dos refletores da natureza, vê o gafanhoto fugindo rapidamente dali. Tem absoluta certeza: um dia essa lua vai cair bem em cima de todos nós.

Quando a pizza começa a espalhar seu aroma pela casa, olha para o relógio de pulso e desliga o forno do fogão.

Fica pensando no gafanhoto querendo entrar porta adentro. Se fizesse isso, o gato o liquidaria no instante seguinte. Cego pela luminosidade, o inseto certamente faria uma última incursão fora do quintal. Não foi o que aconteceu. Naquele exato momento, enquanto ele devora sua pizza, os brotos da ameixeira estão com os minutos contados. É assim que a coisa funciona.

Alguém sempre tem que pagar o pato.

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