Artigos

No limite – por Atílio Alencar

Vivemos num limiar, embora não saibamos exatamente o que nos espera além do próximo passo. Não há, por suposto, nenhuma intenção de fazer desta frase algum manifesto de profundidades. Mas me parece um fenômeno mais ou menos consensual que nossa época é dada a dicotomias, mesmo que gastemos muito tempo afirmando exatamente o contrário; que somos filhos de um tempo em que a multiplicidade, a diferença e a diversidade são as características essenciais.

Houve um tempo – e se não me falha a memória isso foi há poucos anos – em que era perfeitamente possível conduzir conflitos ideológicos sem recair na alternativa fácil da negação do outro. Claro que não me refiro ao choque entre extremos nem aos discursos que se travestem em retórica de ódio. Claro que falo também de meios sociais onde a urgência pela sobrevivência não desautoriza, a princípio, a arte do argumento e do contraponto. Não podemos afinal fingir que a paz foi algo um dia universal – pelo contrário, o mais comum é que a tranquilidade de uns esteja alicerçada no pesadelo de outros. Isso se chama História, que é o nome que damos à vida em movimento.

Mas quando foi mesmo que se tornou impraticável a coexistência das diferenças dentro de um espectro mais ou menos comum de referências? Quando o liberal instruído e socialmente engajado passou a salivar de cólera ao lado de apologetas de ditaduras? Desde quando a social-democracia, por insuficiente que seja, passou a flertar com o desrespeito ao Estado laico e às liberdades de expressão? Qual foi o caminho torto que fez com que ativistas da democracia se aliassem, em nome de um suposto risco de “golpe comunista” (sic), ao que há de mais abjeto na cena política brasileira? Quando foi mesmo que os partidos com projetos de emancipação popular cavaram abismos entre uns e outros, impedindo por questão de minúcias as composições que poderiam atenuar os vícios governistas?

Não que eu seja um entusiasta do caminho do meio; acredito com plena convicção que atitudes radicais fazem o mundo se mover, que a desobediência às convenções tensiona os limites e condicionam o necessário progresso social. Mas quando, cotidianamente, perdemos a capacidade de extrair conhecimento dos conflitos, quando abrimos mão de encarar nossas próprias contradições em nome da insistência dogmática de auto-preservação, é sinal que o mundo não está andando: está é girando às tontas sobre as velhas formas de viver, por medo, insegurança, ódio.

Disso resulta que nos acostumamos com jovens pregando regimes de opressão, com o cinismo substituindo a sinceridade, com o preconceito vingando as insatisfações coletivas ou pessoais. O limiar é no aqui-agora, mas a escuridão do outro lado só se ilumina com a coragem de saber combater com práticas e ideias, e não com ignorância e ensimesmamento.

Quando pretenderam matar Paulo Freire pela segunda vez, há poucas semanas, fiquei imaginando que poucas coisas constrangem mais um fascista do que um espelho voltado para seu ódio. Mas havemos de voltar o espelho para nossa própria face antes disso – porque a estupidez, assim como o diabo, se esconde nos medos íntimos.

Artigos relacionados

ATENÇÃO


1) Sua opinião é importante. Opine! Mas, atenção: respeite as opiniões dos outros, quaisquer que sejam.

2) Fique no tema proposto pelo post, e argumente em torno dele.

3) Ofensas são terminantemente proibidas. Inclusive em relação aos autores do texto comentado, o que inclui o editor.

4) Não se utilize de letras maiúsculas (CAIXA ALTA). No mundo virtual, isso é grito. E grito não é argumento. Nunca.

5) Não esqueça: você tem responsabilidade legal pelo que escrever. Mesmo anônimo (o que o editor aceita), seu IP é identificado. E, portanto, uma ordem JUDICIAL pode obrigar o editor a divulgá-lo. Assim, comentários considerados inadequados serão vetados.


OBSERVAÇÃO FINAL:


A CP & S Comunicações Ltda é a proprietária do site. É uma empresa privada. Não é, portanto, concessão pública e, assim, tem direito legal e absoluto para aceitar ou rejeitar comentários.

Um Comentário

  1. Estes dias descobri que o arroio Cadena continua poluído por culpa dos conservadores que desejam que a situação atual continue. Quando ouvi a afirmação fiquei na dúvida: será se o sujeito pensou nisto sozinho ou existe uma comissão no partido para inventar estas diatribes?
    Por que o liberal anda ao lado do sujeito que prega o golpe? Simples, porque é liberal. Existe um negócio chamado tolerância. Diferente da tolerância "progressista" (toda tolerância para a esquerda e nenhuma para a direita; acho que é Marcuse e tolerância repressiva), os liberais pensam diferente. Não irão comprar a briga dos outros.
    Estado laico é uma coisa, outra completamente diferente é cassar os direitos políticos dos evangélicos. Concordo com tudo o que eles pregam? Não. Mas pagam impostos e têm os direitos de cidadania iguais aos outros.
    Bueno, se o autor acredita que atitudes radicais fazem o mundo se mover e condicionam o progresso social tem que estar preparado para as atitudes radicais de outros que têm outro conceito de progresso social. Abdicar da auto-preservação é o caminho para o aniquilamento. Claro, a esquerda acredita que os outros precisam "abraçar a luz" e converterem-se de maneira pacífica para que o mundo fique melhor. Bastante laico.
    Paulo Freire é uma bola de ferro de uma tonelada amarrada no tornozelo da educação brasileira. O mundo teve uma revolução tecnológica. A neurociência deu um salto na última década e meia. Daquele marxismo pseudo-humanista misturado com luta de classes e Piaget baseado na realidade nordestina só restou um esqueleto ideológico ultrapassado.
    Ódio é palavra que a esquerda usa quando quer posar de vítima. Acham que todos os outros que discordam de suas posições perdem tempo nutrindo algum tipo de sentimento por eles. Infantilidade egocêntrica.
    Fascismo… Uma minoria querendo controlar a sociedade usando as instituições não tem nada de fascista? E uma minoria querendo "engenheirar" a sociedade, também não é fascista? Ou um líder partidário andando de jatinho e helicóptero para cima e para baixo, tomando só whisky escocês é o legítimo "representante do povo"?

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo