Santa Maria

OPINIÃO. “A gente fica mordida, não fica?”

Por Marilicie Daronco / Especial para o site

Comemorei quando soube que haveria show de Liniker em Santa Maria na véspera do meu aniversário. Em junho do ano passado, quando muita gente não sabia quem ela era porque estava mais restrita ao eixo Rio-São Paulo, escrevi para o M de Maria sobre como já tinha perdido duas chances de ver o show, pelo qual estava muito curiosa, duas vezes: uma em São Paulo e outra em Porto Alegre. Naquela época estava na expectativa de vê-lo em setembro, em Sampa, mas não deu certo de novo.

Naquela época, os jornais ainda discutiam se era “a Liniker” ou “o Liniker” e a gente se surpreendia com aquela imagem poderosa, com turbante, barba e batom. Aos poucos, Liniker me conquistava, com suas declarações como “lacrar é quando as pessoas aceitam que elas tem de ser maravilhosas” e a afirmação de que era “bicha, preta e pobre”. Quando vi pela primeira vez o vídeo de Zero, no Youtube, ele tinha um milhão de views. Quando escrevi para o M, eram 2,3 milhões. Hoje, são mais de 11 milhões, e subindo.

Faço essa “retrospectiva” para dizer que estava muito ansiosa pelo evento e que até o minuto final o show correspondeu a todas as minhas expectativas. Que presença de palco, que voz, que pautas importantes ele coloca em discussão. Então, sim, esse é um texto (textão) de uma fã de Liniker.

Disse que o show correspondeu às expectativas até o minuto final (palmas para o Márcio Grings por sinal) porque, depois do fim, teve o bis. O bis tão pedido. Foi aí que a confusão que ganhou as redes sociais e a imprensa nos últimos dias se instalou. Sem querer, eu e duas amigas assistimos “de camarote” o que aconteceu. Vimos as fãs ficarem ao redor da cantora para uma selfie quando ela desceu do palco para dançar com os fãs. E vimos Liniker sair furiosa logo em seguida, subindo para o palco e olhando fixo para onde estavam aquelas fãs, deixando claro sua revolta. Mas na hora não entendemos o que havia acontecido. Foi quando as fãs subiram ao palco para pedir desculpas que o mistério se desfez, ou melhor, foi desfeito, porque certas coisas não se desintegram no ar. Algumas coisas, como a objetificação do corpo, precisam praticamente ser desenhadas para que as pessoas compreendam. Liniker explicou: “mais uma vez objetificarem meu corpo preto, minha bunda, eu não quero ser objetificada por ninguém”. E o bis acabou, porque Liniker não conseguiu mais cantar. Quem entende o todo que o trabalho da cantora faz parte, ficou mordido com certeza.

Depois, Liniker desabafou nas redes sociais e tudo virou o que o Brasil inteiro agora já conhece, Santa Maria mais uma vez ganhar espaço por algo muito negativo. Sobre isso acho que o Leonardo Gadea já disse com toda a sua poesia tudo o que eu gostaria de ter dito, por isso, nem me atrevi a falar nada antes e nem vou me estender muito. Já está muito bem dito na coluna dele no Diário.

Mas aí, hoje li no face o compartilhamento de uma matéria de um portal cujo jornalista, comenta com todo o arsenal de informações de quem não estava no show e pouco se informou sobre o que ali aconteceu, que “Objetificar” é o tipo de linguagem que faz sucesso com o público de Liniker, mocinhas estudantes de humanas e companhia.

Liniker é desses artistas prisioneiros do circuito Sesc, que a imprensa-curadora aplaude e ninguém fora desse mundinho ouve”. Pena ele não ouvir, poderia ter criado mais substrato, principalmente para quem se diz um crítico e se “atreve” a escrever sobre cultura.

O texto vai ao encontro de muitos comentários que li ontem nas matérias compartilhadas sobre a postagem de Liniker. Isso me deixa profundamente triste. Não porque a opinião é diferente da minha, mas pelo preconceito que a gente vê ali estampado, sem o menor pudor. Tem quem pense que Liniker quis usar o fato para se promover, pra mim, o que ele colocou no palco, no centro das atenções, não foi a sua figura, mas a maldita mania de acharmos que temos o direito de apalpar, pegar, passar a mão no corpo do outro.

Vivemos tempos difíceis de intolerância, e bem curiosos também. Eu, por exemplo, cresci ouvindo “não chora minha china veia, não chora” e ainda demoro para ver preconceito na letra da música, mas tenho feito esse exercício e compreendo (ou ao menos estou no caminho de entender melhor os argumentos de quem diz o contrário). Mas fico chocada quando vejo parte dessas mesmas pessoas descendo até o chão e recitando “mexeu com o r7 vai voltar com a xota ardeno” como se fosse Camões (aqui é bom que fique claro que não é uma critica ao funk, ritmo que eu adoro, mas a determinadas letras especificamente).

Por isso, acho que todo esse bafafá trazido a tona por Liniker faz muito sentido. Gente as questões não estão dadas. Pode ser porque sou de humanas como o “jornalista” que li hoje pela manhã comentou, mas isso tudo é muito recente e precisamos evoluir muito. Principalmente se pensarmos que quem “apalpou” Liniker foram fãs que conhecem toda a sua causa, toda a sua luta pelo fim dessa objetificação das pessoas. Então, vamos falar sério.

Precisava esse “escândalo” todo? Na minha opinião, precisava, sim. Porque ouvi quem dissesse que ela “sabia do risco que corria ao descer do palco”. Sim, crescemos acostumados com boa parte dos nossos artistas enjaulados na posição de estrelas em cima dos palcos, com leões de guarda ao redor, para que não pudéssemos chegar suficientemente perto. Mas os tempos são outros. Que bom que Liniker desce do palco (e espero que continue fazendo), como o faz O Teatro Mágico, como fazem outros artistas do cenário independente que quebraram esse padrão que separa a plateia dos seus ídolos e torna as pessoas que admiramos mais humanas como elas realmente são.

Tomara que um dia não seja preciso que ninguém poste mais sobre esse tipo de coisa. Não porque alguém acha melhor “deixar quieto”, mas porque tenhamos criado mais cultura, inclusive a de que o corpo do outro é do outro e não temos direitos de posse ou usucapião sobre ele.

Para mim, Liniker não trouxe polêmica vazia, trouxe possibilidade de colocar em xeque muitas das nossas atitudes. É uma oportunidade de repensar hábitos. Mas, sinceramente, se você não aceita repensar a sua opinião, beleza. Já diz aquele velho ditado: opinião é como bunda, cada um tem a sua. Sendo assim, ficamos acertados, ninguém mexe na do outro _ nem na bunda, nem na opinião _ e estamos combinados.

Artigos relacionados

ATENÇÃO


1) Sua opinião é importante. Opine! Mas, atenção: respeite as opiniões dos outros, quaisquer que sejam.

2) Fique no tema proposto pelo post, e argumente em torno dele.

3) Ofensas são terminantemente proibidas. Inclusive em relação aos autores do texto comentado, o que inclui o editor.

4) Não se utilize de letras maiúsculas (CAIXA ALTA). No mundo virtual, isso é grito. E grito não é argumento. Nunca.

5) Não esqueça: você tem responsabilidade legal pelo que escrever. Mesmo anônimo (o que o editor aceita), seu IP é identificado. E, portanto, uma ordem JUDICIAL pode obrigar o editor a divulgá-lo. Assim, comentários considerados inadequados serão vetados.


OBSERVAÇÃO FINAL:


A CP & S Comunicações Ltda é a proprietária do site. É uma empresa privada. Não é, portanto, concessão pública e, assim, tem direito legal e absoluto para aceitar ou rejeitar comentários.

Um Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo