Campo de batalha – por Bianca Zasso
Quem já viveu a infelicidade de ter que entrar em contato com empresas via telefone para resolver um problema ou encarou a jornada que são as agências do INSS neste nosso Brasil varonil, conhece bem o significado da palavra frustração.
O cineasta inglês Ken Loach, um esquerdista assumido e sempre aberto ao diálogo, resolveu fazer deste sentimento tão desolador um filme que mescla encanto e lágrimas. Nenhuma delas derramadas à toa, aliás.
Eu, Daniel Blake, conquistou a crítica mundial e também o júri do Festival de Cannes, um dos mais importantes do mundo, que deu para a produção seu prêmio máximo, a Palma de Ouro. Só que a grande conquista, aquela que não conhece troféu, acontece nas salas de exibição, onde um público se vê emaranhado na trama do protagonista desde o primeiro segundo, onde os créditos surgem num fundo preto e ouvimos um diálogo entre Daniel Blake e uma profissional de saúde que lhe faz uma série de perguntas que, tanto ele quando o espectador, sabem se tratar de bobagens que em nada vão relatar seu problema com precisão. Blake sofreu um infarto e tenta receber o auxílio financeiro concedido pelo governo, já que está impossibilitado de voltar ao seu trabalho como carpinteiro.
Temos um primeiro ato que faz rir quando deveria fazer chorar, já que a irritação de Blake rende frases ótimas que só poderiam ser fruto do humor britânico. Dave Johns, que interpreta nosso insistente herói, explora como nunca seu talento para o improviso, mas sua atuação ganha novo fôlego quando surge em cena Hayley Squires. Na pele de Katie, uma mãe solteira recém-chegada em Newcastle, ele consegue emocionar sem precisar ser histriônica, trazendo o desespero de sua personagem para a tele de forma sutil e sem maneirismos cênicos.
É dela o momento mais emocionante de Eu, Daniel Blake: no banco de alimentos, ela abre uma lata de molho de tomate e devora o conteúdo. Para não deixar faltar aos filhos, ela passa fome e está no limite. É um simbólico elo entre Katie e seus dois filhos com Blake. Nasce uma espécie de família torta, porém caridosa.
Daniel Blake é um homem comum, de coração bom e que não pensa duas vezes antes de dividir o pouco que tem. Talvez seja toda essa bondade que o leva a insistir se cessar na busca por seu auxílio, chegando ao ponto de negar uma oportunidade de emprego para preencher os critérios necessários. E eles são muitos, ditos de forma decorada e sem emoção por funcionários que não veem a hora de bater seus cartões e voltar para casa.
Uma oposição à dedicação e o carinho com que Blake realiza seus trabalhos em madeira. Ele não tem segurança financeira, mas ama o que faz. Ken Loach, responsável por filmes de guerra com altas doses de emoção, não abandona o gênero neste seu drama. Daniel Blake declara guerra ao sistema e seus soldados nem um pouco prestativos. Quer ser ouvido e não vai dosar o volume de sua voz. A vida e suas burocracias é seu campo de batalha.
Em uma hora e quarenta de duração, Eu, Daniel Blake provoca risadas gostosas e choros sinceros. Loach não apela para emocionar, não há nenhum truque barato. Apenas o retrato de um homem que poderia ser nosso vizinho ou nós mesmos e uma crítica inteligente ao capitalismo e ao sistema que torna pessoas cada vez mais robóticas e insensíveis. Quando surgem os créditos finais, dá vontade de sair por aí escrevendo nos muros “Assista Eu, Daniel Blake”. Já que é contra a lei, a gente escreve por aqui mesmo.
Eu, Daniel Blake ( I, Daniel Blake)
Direção: Ken Loach
Ano: 2016
Disponível em DVD, Blu-Ray e na plataforma Netflix
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