Coluna

O primeiro grito – por Bianca Zasso

Para algumas historiadoras, o movimento pelo sufrágio feminino ocorrido no início da década de 1910 nos países do Reino Unido é considerado uma das primeiras movimentações do feminismo no que diz questão ao acesso a direitos civis. Óbvio que desde sempre houve mulheres que reclamavam por uma posição mais atuante na sociedade, mas com a chegada da mão de obra feminina às fábricas e ao comércio, novas reivindicações surgiram.

Afinal, as mulheres já saíram ganhando menos que os homens, inclusive na realização de tarefas idênticas aos seus colegas possuidores do cromossomo Y. Mas quem eram essas mulheres e o que fez brotar nelas a busca por melhores condições de trabalho e o questionamento da tão valorizada dedicação total aos maridos e patrões? As Sufragistas, filme dirigido por Sarah Gavron, tem parte desta resposta.

Lançado em 2015, o filme mescla personagens fictícias e reais para dar uma ideia do que foi o movimento sufragista em sua fase mais acalorada, que teve cobertura forte da mídia e tirou o sono de muitos governantes quando passou da panfletagem para a desobediência civil organizada.

O fio condutor de As Sufragistas é, justamente, uma mulher que não se encaixava no estereótipo das chamadas “avós do feminismo” como o conhecemos hoje. Maud Watts tem 24 anos, um filho e trabalha desde que se entende por gente em uma lavanderia, onde viu a mãe morrer escaldada devido à falta de segurança do local.

Quase por acaso, ela acaba participando de uma reunião com líderes políticos dispostos a ouvir as queixas das trabalhadoras inglesas. Ao relatar sua trajetória, repleta de perdas e duros fardos apesar da pouca idade, algo se ilumina dentro dela. A vidinha de esposa e lavadeira não lhe satisfaz mais. É como abrir um livro e ter uma revelação de que o mundo é bem maior e seus passos podem ser mais largos.

Parafraseando a filósofa Simone de Beauvoir, Maud torna-se mulher, não nos padrões que a sociedade patriarcal exige, mas no sentido mais puro da palavra. Mulher: forte e incansável. De funcionária submetida a abusos sexuais e trabalhistas para alguém que grita pelas ruas não por arruaça, mas porque alguns homens não estão dispostos a uma conversa civilizada. Se eles estão surdos, nossas cordas vocais estão ótimas.

Carrey Mulligan, apesar de talentosa e dedicada, sofre na mão do roteiro. A direção de arte primorosa na reconstituição de época, privilegiando os tons escuros, que tornaram-se um símbolo das roupas usadas pelas sufragistas (já que não se tem tempo para babados e florezinhas quando se tem uma luta pela frente) quase são esquecidas devido ao excesso de sentimentalismo presente nos diálogos e nas cenas.

Frases de impacto, como a espécie de despedida da personagem Emily Wilding Davison, antes de se atirar na frente do cavalo conduzido pelo Rei da Inglaterra, soam exageradas, como se houvesse a necessidade de deixar claro como aquelas mulheres estão envolvidas com suas causas. As cenas de Maud com seu filho reforçam o mito da maternidade, como se ela estivesse lutando por seu filho e não por uma vida mais justa para ela própria. Afinal, ser mãe é abdicar de tudo, até de si mesmo.

É o que dizem, nem sempre é o que se vive. As interpretações de Helena Bonham Carter e Amanda Lawrence são as mais convincentes e Meryl Streep…bom, não se pode negar seu talento, mas há uma comoção por parte do público que parece tornar incrível até uma participação pequena da atriz.

Em As Sufragistas, na pele de Emmeline Pankhurst, um dos nomes mais importantes dos primórdios do movimento feminista, Streep aparece em duas cenas que só servem para dar a sua personagem ares de ditadora, um prato cheio para quem atualmente gosta de incluir em seu vocabulário termos como “feminazi” ou “feminista louca”.

O filme também peca por não incluir nenhuma personagem negra, já que basta uma passada de olho na história, mais precisamente no livro Mulheres, Raça e Classe, de Angela Davis, para saber que as feministas negras foram primordiais para a conquista do sufrágio feminino não apenas no Reino Unido, além de mostrarem que, como todo e qualquer movimento, o feminismo não é perfeito e casos de racismo entre as sufragistas não eram incomuns.

Mesmo com alguns problemas históricos e cinematográficos, As Sufragistas cumpre talvez o papel mais difícil de uma obra, que é abrir os horizontes do espectador. Tenho certeza que alguns homens, espero que poucos, não irão achar nada demais, já que sempre estiveram na posição dominante e não são dados à mudanças tão radicais como perder alguém que lave suas roupas e prepare suas refeições, já que ele já faz um trabalho muito árduo todos os dias para garantir a despensa cheia.

São homens que discursam sobre nossa fragilidade e inocência e deixam seus filhos aos nossos cuidados, assim como suas camisas e sapatos, que ele devem pensar que se passam e lustram sozinhos. Somos ótimas em cuidar da panela no fogo e da febre alta do bebê, mas incapazes de votar e decidir nossos futuros. Só mesmo alguém que não sabe o que é uma mulher de verdade teria uma ideia dessas.

Nenhuma mulher nasce descontruída. Falo por mim. Deveria ser imparcial, mas não há como não me colocar em um texto que toca justamente num assunto da qual faço parte. Eu e toda e qualquer mulher, independentemente de cor, nacionalidade ou classe social. Se hoje eu tenho o direito de votar, por mais que seja difícil escolher um candidato nestes tempos tão sombrios, é porque outras, antes de mim, foram à luta.

Eu também terei de ir e minhas filhas e netas idem. Por outras causas, de outros modos, mas nunca quietas. Se As Sufragistas fizer uma mulher repensar sua condição e abandonar a zona de conforto, já é o suficiente para chama-lo de bom filme. Arte também é para nos fazer despertar de sonos que a gente nem sabia que dormia.

As Sufragistas (Sufragette)

Ano: 2015

Direção: Sarah Gavron

Disponível em DVD, Blu-Ray e na plataforma Netflix

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