Artigos

Frutos da árvore – por Pylla Kroth

A mãe e o pai da mãe da mãe dela, uma menina que cantava e ainda canta, eram descendentes de bessarábios, também chamados de alemães-russos, de educação rígida quanto a tudo relacionado ao trabalho e principalmente em manter a casta, ao imigrar para o Brasil depois da primeira grande guerra – mal sabendo eles que a única pureza de raça que ainda se conservava nestas alturas da história da humanidade, após sucessivas invasões e miscigenações que os anos de guerras, ascensões, quedas e deposições de inúmeras civilizações era só e somente só alguns genes dos antigos neandertais! (e ainda é assim, não?). Sendo assim, criada neste complexo regime de pensamento, a mãe da menina sofreu de vários pesares advindos de todo esse contexto, tomando por base todos os anos de infância, adolescência  e educação para a vida adulta.

A moçoila, como se dizia na época, era uma “flor de formosura,” linda por demais, um rosto privilegiado, de rara beleza, com belos olhos cerúleos e espelhado como o azul do mar. Expressão meiga, sorriso tímido e agradável, corpo suave e esculpido pelos dedos do Criador. E assim, certamente conquistava todos que a olhavam, porém poucos se atreviam a cortejar a filha do severo bessarrábio, que era conhecido por ser uma pessoa de difícil trato, um comerciante muito respeitado e temido na colônia em que habitavam.

Porém, certa ocasião, a atenção da moça foi atraída para um cantor que animava as festas e fazia serenatas, tocando em bailes. Foi amor à primeira vista. O rapaz em questão era muito bem apessoado, como se dizia naquele tempo, e possuía uma voz magnífica que imediatamente conquistou o coração da jovem. Porém, e sempre há ‘um’ porém em toda boa história, o pretendido, apesar de todos os adjetivos como cantador e seresteiro, tinha um “problema”. E novamente emergiu a questão da raça, pois ele trazia por sobrenome “de Moura”, um brasão sanguíneo associado a raízes semitas e de não ascendência teutônica, sendo a própria palavra “moura”, uma descrição morfológica originária da característica “moreno” ou “queimado do sol”, que era como lá nos primórdios, na época das Cruzadas, os cristãos chamavam os judeus e também os sarracenos: mouros.

E, além do mais, ele era apenas ‘um simples cantor’. Que isso fique claro. E, mesmo assim, contra todas as adversidades, a moça que era muito obstinada, apesar da sua compleição suave e delicada, talvez até mesmo frágil aos olhos de muitos, acabou por enfrentar a ira de seu severo pai, quando anunciou que gostaria de se casar com o dito cantador moreno. Com ele, ela teve quatro filhos: duas meninas e dois meninos, sendo que dois deles, uma das meninas e um dos meninos, vieram se tornar exímios cantadores desde a tenra idade. Este casamento durou pouco mais de uma década e finou-se tragicamente com a morte do marido amado através de suicídio por razões até hoje ignoradas em sua completude pelos descendentes vivos.

Depois de viuvar desta maneira traumática, ela teve de casar-se novamente, pois tinha quatro filhos que não poderia dar conta de criar sozinha. Desta vez, o novo marido estava dentro dos moldes que seu já falecido pai teria aprovado: era um bessarrábio, era branco e tinha qualidades para administrar a herança que coubera a ela após morte do pai, ou pelo menos isso era o que ela pensava.

Porém, após o casamento, munido dos direitos de marido, depois de algum tempo, passou a maltratar as crianças e servir-se de modo indevido e até mesmo indecoroso das finanças herdadas pela mulher, “dando o golpe”, como diz o gaúcho, e em detrimento das crianças do casamento anterior, ele passou a beneficiar apenas a própria filha que viera ter com ela. Os anos passaram e as coisas apenas pioraram, até chegar ao ponto em que ele veio a incorporar todas as posses da esposa as suas próprias herdadas dos pais, deixando os filhos do primeiro casamento da mulher sem um tostão, beneficiando apenas seu próprio sangue, a filha que tivera.

Sem condições de viverem naquela situação, os enteados foram saindo de casa sem muita escolha, sendo que apenas uma das meninas permaneceu cuidando da mãe, enquanto a outra foi agregada a casa de outra família, de descendentes de alemães, que por sinal lhe trataram e lhe educaram todo o carinho que lhe faltava do padrasto, dando ênfase inclusive as suas qualidades como cantora. Um dos meninos foi trabalhar na colônia, na roça, e se deu bem com isto. O outro, também exímio cantor, tentou a vida em outras plagas, longe da colônia, não tendo um final muito feliz depois de alguns anos, a exemplo de seu pai.

Ufa! Não foi fácil resumir toda esta história, que aos poucos relevo por aqui, mas através dos anos um recorte aqui, outro ali, um comentário lá, outro cá, uma lembrança que escapa, que vem a tona, que surge parece que do nada, ganha voz aleatoriamente, e aos poucos foram se juntando as peças de um enorme quebra cabeças que ainda não está completo. E não sei se algum dia estará, pois paulatinamente se faz entender e a conhecer a origem, a história destes antepassados por quem se deu ao interesse de ouvir.

Este ano ela completa 84 anos, a menina que canta, ainda canta. É envaidecida de seus seis filhos, cinco mulheres e um homem. Todos são cantores. No final do ano de 2017 ela veio a Santa Maria para prestigiar com muito orgulho o fruto mais recente desta genealogia musical, vindo a comprovar que a maçã não costuma cair longe da árvore, como bem diz o ditado. E eu estive na plateia quando chamaram a menina (agora uma orgulhosa mãe e avó) para receber a homenagem ao filho cantor. E como sei esse pedacinho da história, lembrei-me de tudo… Tive a felicidade de estar ao lado dela, sentir sua respiração, ouvi-la cantar as canções do filho, e assim eu pude me sentir docemente ofuscado pela luminosidade do seu sorriso largo. Mas tem algo que me saltou a lembrança com um acento de vitória e recompensa: dava pra perceber a presença imponente do De Moura cantor, ah se dava! Um espírito ainda mais orgulhoso que ela própria, um espectro de luz a abençoar mãe e filho. A vitória da arte sobre a vida. A vitória da arte sobre a vida…

Artigos relacionados

ATENÇÃO


1) Sua opinião é importante. Opine! Mas, atenção: respeite as opiniões dos outros, quaisquer que sejam.

2) Fique no tema proposto pelo post, e argumente em torno dele.

3) Ofensas são terminantemente proibidas. Inclusive em relação aos autores do texto comentado, o que inclui o editor.

4) Não se utilize de letras maiúsculas (CAIXA ALTA). No mundo virtual, isso é grito. E grito não é argumento. Nunca.

5) Não esqueça: você tem responsabilidade legal pelo que escrever. Mesmo anônimo (o que o editor aceita), seu IP é identificado. E, portanto, uma ordem JUDICIAL pode obrigar o editor a divulgá-lo. Assim, comentários considerados inadequados serão vetados.


OBSERVAÇÃO FINAL:


A CP & S Comunicações Ltda é a proprietária do site. É uma empresa privada. Não é, portanto, concessão pública e, assim, tem direito legal e absoluto para aceitar ou rejeitar comentários.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo