Coluna

Filmes velhos – por Bianca Zasso

A morte do cineasta italiano Bernardo Bertolucci, ocorrida na semana passada, reacendeu um debate complexo. Muitos foram os comentários nas redes sociais sobre a tentativa de estupro armada por Bertolucci e o ator Marlon Brando durante as filmagens do longa O Último Tango em Paris.

Para os dois homens, era uma “brincadeira” e uma forma de conseguir uma interpretação mais autêntica da atriz Maria Schneider. Lógico que é um crime absurdo o que aconteceu naquele set de filmagem e, infelizmente, não é um caso isolado. Relatos de assédio no mundo do cinema podem ter ganho as páginas dos jornais recentemente, mas existem desde a primeira câmera foi ligada.

É uma questão de patriarcado e poder. Todo este discurso foi para questionar algumas pessoas que “comemoraram” o falecimento de Bertolucci por conta de sua atitude horrenda. E é aí que entra a complexidade da coisa toda.

Filmes envelhecem. Uns mais, outros menos. Durante uma revisão de Gatinhas e Gatões, um dos clássicos da Sessão da Tarde dirigido por John Hughes, foi impactante ouvir um diálogo entre dois adolescentes em que um afirma, ao se referir a namorada bêbada, que o estado da garota permitiria que ele à violentasse de dez maneiras diferentes sem que ela percebesse.

A mulher de 31 anos que eu sou hoje teve vontade de quebrar a televisão. Tenho certeza que a garota de 15 anos que um dia eu fui sequer percebeu o peso da frase. Por quê? Simples: ninguém nasce desconstruído e mudar de opinião é a prova de que estamos vivos e fazendo mais que simplesmente pesar sobre o planeta terra.

Bernardo Bertolucci foi criminoso ao aceitar a ideia de agarrar sem aviso prévio uma atriz em um set de filmagem onde ela circulava muitas vezes nua e vulnerável. Maria Schneider, como toda mulher, sabe que o medo do estupro é uma constante em nossas vidas. Um erro deve ser punido e é uma injustiça sem tamanho Bertolucci, Brando e todos da equipe não terem pago por ele.

Mas e a obra de arte, o que tem a ver com isso? Só de imaginar o sofrimento de Schneider, sinto vontade de chorar, mas jamais comemoraria a morte do artista Bertolucci. A importância de suas obras para o cinema (e para a minha vida cinéfila, diga-se de passagem) são imensas e num tempo onde alguns homens e mulheres com poder querem negar o direito à arte e ao pensamento crítico, é mais importante ainda que se discuta o crime e também o trabalho de Bertolucci.

Não me sinto menos feminista por não ter soltado fogos no dia da morte de um dos meus mestres do cinema. Tive minha alma alimentada por cenas que ele criou e isso ninguém pode me tirar. Como crítica de cinema e jornalista, meu trabalho é não deixar morrer os filmes que ele deixou, sem esquecer de questionar seu caráter.

Pintores renascentistas também não deviam ser santos. Vamos bani-los dos museus por isso? Separar criador e obra é parte do nosso trabalho. Em tempos de resistência, devemos abrir ainda mais os diálogos. Mas não estamos em um campo de batalha, prontos para apedrejar o dito inimigo. Deixemos o jogo sujo do soco e do xingamento vazio para o outro lado. Nossas armas sempre serão as palavras, as imagens, a arte.

Eu sei que corro o sério risco de ser chamada de muitas coisas por conta deste texto. Mas não abro mão de emitir a minha opinião e já aviso que estou disposta ao diálogo, hoje e sempre. É assim que construímos ideias, soluções e até amizades.

Lamento a morte de Bertolucci pelo que ele fez pelo cinema. Como homem, o acho desprezível. Vou continuar assistindo O Conformista e Os Sonhadores (acima, a foto de uma cena) com os olhos brilhando. Quem quiser vir comigo, sinta-se convidado.

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