Artigos

O Brasil que tem fome – por Leonardo da Rocha Botega

Quase 60% dos lares brasileiros têm algum nível de insegurança alimentar

Josué de Castro (1908-1973) contava que logo que começou a clinicar em Recife, no início da década de 1930, foi chamado para trabalhar em uma grande fábrica. Chegando lá verificou que os doentes não tinham uma doença definida, porém não podiam trabalhar e por causa disso eram acusados de ser preguiçosos. Passado algum tempo, após inúmeras observações chegou a conclusão: o que os trabalhadores tinham era fome, uma doença para o qual não tinha qualificação para curà-los.

Diante de tal diagnóstico, os patrões solicitaram que Josué se demitisse. Naquele momento, o então médico evidenciou que, apesar dos avanços que vinham sendo realizados na área, a medicina era incapaz de tratar a doença da fome. Desde então rompeu as fronteiras de sua especialidade e passou a buscar em outras áreas do conhecimento as necessárias respostas sociais para um dos piores problemas que afetava a população pobre do país.

Mergulhou fundo na geografia, na sociologia e na antropologia e, em 1932, escreveu o inquérito “As condições de vida das classes operárias do Recife”, onde, rompendo com as visões deterministas e preconceituosas da época, produziu um dos primeiros estudos sobre o quão grave era o problema da fome. O trabalho foi considerado um divisor de águas na História da nutrição no Brasil.

Em 1946, no clássico “A geografia da fome”, Josué de Castro escreveria que a realidade mundial era marcada pelo fato de que “metade da humanidade não come; e a outra metade não dorme, com medo da que não come”. Uma frase cortante em um país acostumado com uma lógica onde a questão social é caso de polícia.

Os estudos de Josué de Castro, bem como os de Celso Furtado, Florestan Fernandes, Milton Santos, José Graziano entre outros, e a ação dos Movimentos contra a Carestia, das Pastorais e da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, fundada por Herbert de Souza, o Betinho, trouxeram a questão social para o centro do debate sobre a fome no Brasil.

Graças a essa guinada, o país conseguiu iniciar na década de 1990 uma trajetória de redução dos índices de pobreza e de pobreza extrema. Uma trajetória que, no que tange a fome, parecia estar sendo gradualmente consolidada quando, em 2014, a Organização das Nações Unidas anunciou a saída do Brasil de seu Mapa da Fome.

Sete anos depois, tal aparência não existe mais. O que se demonstrava consolidado vem sendo desmantelado ao ponto de assistirmos, em Cuiabá (MT), uma cena onde centenas de pessoas formam fila para receber ossos para matar a fome. Uma barbárie em céu aberto em plena capital do Estado campeão nacional em exportação de carne.

Hoje, segundo o Grupo de Pesquisa Alimento para Justiça que reúne pesquisadores da Universidade Livre de Berlim (Alemanha), da UFMG e da UnB, 59,4% dos lares brasileiros apresentam algum nível de insegurança alimentar.

São 125 milhões de brasileiros e brasileiras que não conseguem se alimentar adequadamente. Dentre estes, 27 milhões em miséria absoluta, sem casa, sem comida, sem perspectiva. Uma drástica realidade que não cabe dentro de um governo que em 2020 pagou 3,8 bilhões de reais por dia em juros e amortizações de uma dívida pública que teimam em não tornar transparente (um bilhão/dia a mais do que em 2019). No paraíso ultraliberal é mais importante “matar a fome” do financismo do que a dos miseráveis.

Nos anos 1990, Chico Science, um “discípulo de Josué de Castro”, cantava: “Ô Josué, eu nunca vi tamanha desgraça, quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”. Precisamos urgentemente parar de alimentar os urubus financistas para poder alimentar o Brasil que tem fome. Precisamos urgentemente ler mais Josué de Castro e ouvir menos as ameaças daqueles que lucram com a miséria.     

(*) Leonardo da Rocha Botega, que escreve no site às quintas-feiras, é formado em História e mestre em Integração Latino-Americana pela UFSM, Doutor em História pela UFRGS e Professor do Colégio Politécnico da UFSM. É também autor do livro “Quando a independência faz a união: Brasil, Argentina e a Questão Cubana (1959-1964).

Observação do Editor: A imagem (sem autoria determinada, da semana passada, que ilustra este artigo é da fila para pegar ossos de boi descartados por açougue de Cuiabá. Ela está originalmente publicada no portal Baré (AQUI).

Artigos relacionados

ATENÇÃO


1) Sua opinião é importante. Opine! Mas, atenção: respeite as opiniões dos outros, quaisquer que sejam.

2) Fique no tema proposto pelo post, e argumente em torno dele.

3) Ofensas são terminantemente proibidas. Inclusive em relação aos autores do texto comentado, o que inclui o editor.

4) Não se utilize de letras maiúsculas (CAIXA ALTA). No mundo virtual, isso é grito. E grito não é argumento. Nunca.

5) Não esqueça: você tem responsabilidade legal pelo que escrever. Mesmo anônimo (o que o editor aceita), seu IP é identificado. E, portanto, uma ordem JUDICIAL pode obrigar o editor a divulgá-lo. Assim, comentários considerados inadequados serão vetados.


OBSERVAÇÃO FINAL:


A CP & S Comunicações Ltda é a proprietária do site. É uma empresa privada. Não é, portanto, concessão pública e, assim, tem direito legal e absoluto para aceitar ou rejeitar comentários.

Um Comentário

  1. Ninguém tem bola de cristal que funcione. Brasil vive de commodities. Agronegocio. China está colonizando a Africa. Por lá, uma hora ou outra, a situação politica acaba por se resolver nos diversos paises. Novas fronteiras agricolas serão abertas.
    Temos o problema do aquecimento global. Padrão de vida e desenvolvimento demandam energia. Que não se revolve somente com eolica e solar. Ou seja, teremos pressão para não nos desenvolvermos economicamente para não piorar o problema.
    Não, o socialismo não resolve.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo