Crônicas

Canção de ninar para uma cidade insone – por Ceura Fernandes

Os carros correm, como se voassem pelas avenidas. Rugem como feras às pressas procurando suas presas. Homens e mulheres, dentro desses carros, consomem suas vidas, geralmente à procura de consumidores. Querem mais, sempre mais.

Vez ou outra, uma sirene corta a uniformidade do barulho. Não imaginamos o que possa ter acontecido. Já não temos tempo para nos interessar por outras tragédias, a não ser as que nos atingem diretamente. Vez ou outra uma ambulância sufoca a ânsia dessa corrida desbragada. Será que alguém desistiu de viver? Ou teria sido algum bruto que interrompeu a trajetória de um sonhador que corria para seu amor?

Do 18º andar em que me encontro, como que de fora do mundo, pergunto:

– Será que essas pessoas que correm pensam que, correndo, a vida dobra? E o que fazem com o tempo que sobra? Por que a cidade de São Paulo não dorme? Está com insônia crônica? E isto tem cura? Quanto tempo dura? Há médicos para tratar a epidemia de ansiedade desta cidade? E quem trata da agonia dos médicos diante do abandono a que está relegada a saúde?

E sigo perguntando. Mesmo sem respostas, converso com a dúvida. Sei apenas que São Paulo não dorme e, estando no espírito de São Paulo, também eu não durmo. E, sem dormir, fico me perguntando:

– Será que mudou a natureza humana ou os humanos mudaram a relação com a natureza? Teria a estética do consumo consumido a ética dos costumes?

São sólidas as perguntas, escassas as respostas.

Da perspectiva do alto de um arranha-céu, diminui o tamanho dos carros. Vejo-os como besourinhos metálicos, que correm por caminhos que se cruzam e se afastam. Pela velocidade que andam, seus motoristas parecem desafiar a morte. Será que pensam ser imortais? Cada um desses seres enfileirados, embora já não tenham tempo de perceber se é verão ou primavera, continuam sendo gente, não são feras. Incorporados ao ritmo rápido dessas cidades, não cultivam a paciência da espera.

O que sei é que São Paulo não dorme. E eu, preocupada com a falta de sono desta cidade, também não durmo.

São 12 milhões de pessoas que fazem deste pedaço de mundo uma espécie de formigueiro de interatividade humana. Então, sem dormir, aproveito e rezo, me concentro em pensamento para que estas pessoas apressadas não se arrependam do lugar para onde estão indo.

Cidade, tu que tens a santidade no nome, acalma e protege tua gente destas máquinas que rugem a exalar poluentes pelas tuas avenidas. Ensina tuas crianças que a vida tem outros cheiros. Mostra-lhes a natureza a fluir com suavidade. Leva-as a sentir aromas dos nossos campos. Conhecer árvores e pássaros em festa nas nossas florestas.

São Paulo, com tanto conhecimento e sabedoria que tens nas tuas vísceras e entranhas, saiba digerir com vagar tantas pessoas – migrantes ou visitantes – que engoles todo dia. E que as devolva para a vida mais sábias e felizes.

Do alto de onde estou, olho e oro por São Paulo. Não sei se alguém tem tempo para ouvir minha oração, e imaginar que alguém pede harmonia e alegria para uma anônima multidão. Mas isto tranquiliza meu coração. E, enquanto uma ambulância chora pedindo passagem, pergunto: por quem chora esta ambulância? Será por alguém que cansou de correr e enjoou da ganância? Seria mais uma vítima de política e ignorância? Agarrada na esperança, rezo, então, por quem leva essa ambulância.

Tateando à procura da verdade, fico sem saber como será, no futuro, a insanidade desta cidade. Como estarão amanhã os que agora correm na frente e decidem o trajeto da maioria, os que se deixam levar e aqueles que, por não saberem onde estão e para onde vão, hoje são atropelados. Como será a vida deles, a nossa vida lá na frente?

Escondida no meio desta alquimia de solidão ruidosa, neste apartamento – uma dessas milhares de caixinhas que guardam gente – me concentro no bom lado de São Paulo.

Então, penso na maravilha da tecnologia, na beleza da pesquisa e da ciência que, na quietude do silêncio, vivem espalhadas por prédios à espera do momento de vir para a rua, melhorar a minha vida e a tua. Penso em notáveis artistas e pensadores, nos corajosos investidores, nos incansáveis trabalhadores que garantem progresso e segurança, homens e mulheres que mantêm a limpeza, floristas que vendem flores, mestres que deixam legados como herança, mães que orientam filhos e tanta gente boa, pessoas que inspiram confiança.

Ah! São Paulo, com tanta gente que acolhes, quanto tens de riqueza humana! Tua fórmula de crescer vem do trabalho e da esperança. Esqueço teu barulho e tua pressa, e me encanto com tanto encanto silencioso do teu dia a dia.

Me arranjo no travesseiro, rezo mais uma Ave Maria.

Assumo meu melhor jeito maternal, fecho os olhos e canto: – Nana neném… que lobo mau não tem. O bicho mais temido está perdido neste vai e vem. Mamãe chegará depressa e papai logo vem. Nana, São Paulo, nana neném…

A crônica
Canção de ninar para uma cidade insone, de Ceura Fernandes, de Santa Maria, conquistou o prêmio Incentivo Local na categoria Crônica no 40º Concurso Literário Felippe D’Oliveira, em 2017. A publicação foi autorizada pela Secretaria Municipal de Cultura de Santa Maria. Crédito da imagem que abre a página: Maria Angélica Spínola Yamaguchi / Pixabay.

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