Crônicas

Reflexões acerca de crônicas ou a Nobre Arte da Indiferença – por Luciano Damaceno

O que cabe no espaço de uma crônica? Certamente muito do homem, e muito das banalidades do homem. Sobretudo as banalidades maravilhosas. Os ingleses tecem erudição. Os franceses desfiam sarcasmo. Entre nós há o riso franco, o bom e velho humor e aquela malícia ligeira e de classificação livre.

Fundamental, porém, e para todos, é umedecer-se na névoa fugaz dos eventos fortuitos. O assunto virá gratuitamente, como que caído dos céus, e será desenvolvido de acordo com as coordenadas geográficas, ou de acordo com o clima, ou a situação política, ou o PIB, ou o número de prêmios Nobel do país, ou o momento astral respectivo etc. etc.

Evidentemente, é preciso paciência e um pouquinho de conhecimento (pouquinho mesmo) para intercalar umas citações de um austero e desconhecido filósofo pré-socrático, com outras tantas de um não menos sisudo historiador humanista medieval. A crônica ficará elegante e, por assim dizer, monarquicamente instrutiva.

Nós, porém, vamos de pagode e em chinelos. A constância reflexiva é algo não menos que inútil. Nada nos obriga a seguir pelas vielas insípidas da filosofia, da teologia, da arqueologia etc. e tal, só para construir uma crônica, que é mais efêmera do que aquele momento sensível do instante a que chamam futuro, e mais breve que a mais longa utopia humana. O cotidiano anódino é a nossa matéria-prima.

As ruas alcoviteiras é que vão nos contar o que vai pela vida afora e, é claro, o que vem pela vida adentro. Pegamos o dia por seu ângulo mais óbvio e menos pungente. Pois é preciso um pouquinho de bom senso (pouquinho mesmo) para saber que não há outro assunto a ser tratado quando aquela morena fica só de biquíni, toda queimadinha de sol, e se põe de corpo inteiro nas entranhas do mar privilegiado. Ali está a nossa metafísica! Ali iremos profundamente!

E iremos sem cinismo e sem alusões pérfidas. Aquele que ri é porque ainda não ouviu as más notícias. A vida é algo que se faz quando não se consegue dormir. Há mulheres que pedem o divórcio apenas porque suspeitam de que seu marido não é o pai de seu filho.

Nossas crônicas jamais abrigariam tal teor. O nosso humor é o humor do homem cordial. A nossa malícia não é rancorosa. O chiste nunca virará sarcasmo. O nosso riso não é impiedoso.

É que nas tardes quentes os quadris querem requebrar. Os feriados estão na razão direta do nosso cansaço. Um samba ao fundo e umas cervejinhas bem geladas, eis aí o paraíso. E o jaburu – aquela ave de estatura avantajada, pernas grossas, asas fornidas – que continue lá, passando os dias com uma perna cruzada na outra, triste, triste, daquela austera, apagada e vil tristeza. Aqui a vida pulsa perenemente feliz. O resto são fados irremediáveis.

Entretanto, por força da prática, ou da fatalidade, também nós, vez que outra, fazemos brotar do chão tropical algumas originalidades docemente exóticas e interessantes.

Nossas crônicas, por exemplo, sempre serão permeadas pela peculiaríssima e nobre arte da indiferença.

Indiferença pela realidade degradante, trabalhando assim a ficção talentosa e a fantasia ensolarada. Indiferença pelo grotesco, pela animalidade humana, pelo desespero louco daqueles que perderam toda esperança. Indiferença por aquilo que dói dizer, que dói escrever, que dói pensar. Indiferença pelas chagas cruéis e impudentemente expostas.

Assim, nossa crônica – sempre com um humor saudável – vai exaltar a dignidade daquele catador de papel, que levanta às cinco da manhã e labuta o dia todo, enquanto outros (às vezes com ensino superior) preferem assaltar bancos.Será uma apologia à honestidade e à resignação. Porém, não contaremos que aquele catador não gosta nem um pouco de ser catador. Que ele preferiria assaltar bancos. Que o que nele chamam de honestidade é apenas a consequência previsível do massacre social a que está exposto.

Que ele sabe que em terra de lobos é preciso aprender a uivar, mas grito é fraco, desnutrido, coagido, desviado.

Não, não contaremos essas coisas. A crônica sairia maculada, pessimista, intragável… Até no lodaçal mais sujo, nossos olhos sempre enxergarão a tenra flor do otimismo.

Do mesmo modo, numa linguagem simples como é de praxe, e cheia de nostalgia como convém, comentaremos a morte daquela velha mendiga, aquela que há trinta anos perambulava pelas ruas de nossa cidade. Falaremos dela e dos cachorros seus amigos.

Dela e de seu rosto alienado e infantil. E diremos que ela já fazia parte da paisagem… A fome que curtiu, sua humanidade violentada, a vítima que foi, seus medos e dores % tudo isso deverá ser omitido, para o bem da crônica. Pois há realidades que dilaceram. E há naturezas que, por serem tão alegres e positivas, não devem ser impressionadas com o frio espetáculo da verdade.

Nós somos assim, efusivos e sempre prontos a esquecer as mágoas. Um menino dentro de um container de lixo comendo restos de comida, não é uma infância esquartejada, não é a humilhação suprema do ser humano. Se pararmos para pensar, acharemos pontos positivos a serem apontados. Exemplo: poderiam ser dois meninos.E assim a gente vai, sempre em frente, sem grilos e sem remorsos.

Os que são dados à erudição talvez pensem que a crônica da indiferença pode ser o medo que ronda nossa alma, medo de desvendar nosso verdadeiro caráter, e que disso há sobejos exemplos nas culturas antigas orientais. Os dados ao sarcasmo dirão que isso faz parte da alegria falsa que pintamos para nós mesmos todos os dias, e que não precisamos trocar as telas, basta trocar os pincéis.

Todavia, nós sabemos de nós. Eles que continuem observando a vida com olhos empoeirados e tristonhos. Nós vamos em outro ritmo, pois nossa terra tem palmeiras e primores que eles jamais encontrarão por lá.

A crônica
Reflexões acerca de crônicas ou a Nobre Arte da Indiferença
, de Luciano Damaceno, de Santa Maria, conquistou 1º lugar na categoria Crônica no 32º Concurso Literário Felippe D’Oliveira, em 2008. A publicação foi autorizada pela Secretaria Municipal de Cultura de Santa Maria. Crédito da imagem que abre a página: Clker Free Vector / Pixabay.

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