Artigos

Cem anos de esquecimento – por Orlando Fonseca

O cronista e centenário da morte de Cezimbra Jacques, primeiro escritor de SM

Fôssemos uma Macondo, e o caso se daria como uma circunstância da rotina. Para um lugar de realismo fantástico, cercado de mistérios, seria mais um dos fatos esquisitos da cidade esquecer uma figura digna de monumento. Mas somos, em verdade, Santa Maria, uma cidade no coração do Rio Grande do Sul, uma povoação oriunda de fatos históricos, desenvolvida à luz do progresso e da ciência.

No entanto, é uma realidade que nós, santa-marienses, cidadãos vivos, residentes e domiciliados no centro do Estado, não lembramos do seu primeiro escritor, do autor de um dos seus símbolos mais marcantes, pioneiro e patrono de um movimento cultural, cujas influências se lançam para além das fronteiras gaúchas.

Digo isso para referir que, neste mês de julho, mais precisamente no dia 27, completa-se um século da morte de João Cezimbra Jacques. E sua memória não mereceu ainda um monumento digno, uma grande instituição com seu nome, ou uma rua ou logradouro que o celebrasse com maior evidência.

Cezimbra Jacques nasceu em 1849, ainda jovem participou das campanhas militares da Guerra do Paraguai, o que o conduziu a uma carreira militar. Passou a instrutor da Escola Militar, tendo ocupado postos em Rosário do Sul e Porto Alegre. Já na capital, criou o primeiro Grêmio Gaúcho, em 1898, matriz do que viriam a ser, na segunda metade do século passado, os Centros de Tradição Gaúcha.

Por esta razão, foi escolhido o Patrono do Movimento Tradicionalista Gaúcho, em um dos seus Congressos. Responsável que foi pela formulação das bases de tal instituição, naquele estatuto primordial, sendo também um dos mentores da valorização da figura do “gaúcho”, que se firmou após os eventos da Revolução Farroupilha, principalmente pela celebração do Partenon Literário, movimento cultural porto-alegrense, da década de 1870. Por suas incursões na vida intelectual e literária, foi um dos fundadores da Academia Rio-Grandense de Letras, patrono da cadeira 19.

Até o momento, o livro Ensaio sobre os costumes do Rio Grande do Sul, publicado por Cezimbra Jacques em 1883, é tido como o primeiro de um santa-mariense, o que o torna, por conseguinte, o primeiro escritor da cidade.

Ele publicaria outros 13 livros, sendo que, no seu livro Assuntos do Rio Grande do Sul, de 1912, apresentou a sua mais expressiva criação literária, o “Conto Indígena de Imembuy”. Nele, usando a fantasia e dados históricos, como o próprio autor adverte no texto, cria uma narrativa da fundação da cidade, com os episódios fictícios da índia que se apaixona pelo bandeirante, Rodrigues, depois Morotin, pelo qual oferece-se em sacrifício. De sua união, teria nascido, na imaginação de Jacques, o primeiro santa-mariense.

Pesquisas, ao longo dos anos, têm demonstrado que a nossa cidade não tem outra origem que não a Comissão Demarcadora do Tratado de Santo Ildefonso (1777), entre as coroas portuguesa e espanhola. Depois de cumprirem a sua missão, parte dos militares paulistas passaram a residir por aqui, deixando sua marca na formação da Rua do Acampamento, e na capela dedicada a Santa Maria, da qual se originou o nome da futura povoação. Mas Imembuy perdura no imaginário coletivo como a lenda de origem.

Cezimbra Jacques, um intelectual afeito à tradição, por coincidência histórica, morria no mesmo ano em que um grupo de intelectuais e artistas, em São Paulo, iniciava um movimento que introduziria a modernismo nas artes e na cultura brasileira. Mas não foi por este motivo que foi sendo relegado ao esquecimento.

Uma vez que, por descaminhos de uma verdadeira novela, a sua personagem foi-se tornando cada vez mais vívida como lenda (que não tem autor); o seu criador precisou ser submetido ao sacrifício do ostracismo histórico.

Entretanto, como pretendemos ter constituído uma Cidade Cultura, compete-nos, no presente, manter vivos todos os fundamentos do nosso Patrimônio Histórico. Os materiais e os imateriais, como a memória de seu primeiro escritor. Desse modo daremos valor às figuras humanas como emblemas tão importantes quanto a simbologia da arte e da imaginação.

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

Nota do editor. A imagem que ilustra esta crônica é uma reprodução da capa daquele que seria o primeiro livro publicado por Cezimbra Jacques: “Ensaio sobre os costumes do Rio Grande do Sul

Artigos relacionados

ATENÇÃO


1) Sua opinião é importante. Opine! Mas, atenção: respeite as opiniões dos outros, quaisquer que sejam.

2) Fique no tema proposto pelo post, e argumente em torno dele.

3) Ofensas são terminantemente proibidas. Inclusive em relação aos autores do texto comentado, o que inclui o editor.

4) Não se utilize de letras maiúsculas (CAIXA ALTA). No mundo virtual, isso é grito. E grito não é argumento. Nunca.

5) Não esqueça: você tem responsabilidade legal pelo que escrever. Mesmo anônimo (o que o editor aceita), seu IP é identificado. E, portanto, uma ordem JUDICIAL pode obrigar o editor a divulgá-lo. Assim, comentários considerados inadequados serão vetados.


OBSERVAÇÃO FINAL:


A CP & S Comunicações Ltda é a proprietária do site. É uma empresa privada. Não é, portanto, concessão pública e, assim, tem direito legal e absoluto para aceitar ou rejeitar comentários.

3 Comentários

  1. Outro boato é ‘universidade federal em Cachoeira do Sul’. Santa Maria tinha a Faculdade de Farmácia desde 1931. Doutor Mariano da Rocha foi professor e diretor da referida instituição (onde deu uma força para a fundação da FIC também). Em 1947 a Universidade de POA passou a se denonimar Universidade do Rio Grande do Sul, incorporando a Faculdade de Farmacia de Santa Maria e as Faculdades de Direito e Odontologia de Pelotas. UFRGS foi federalizada em 1950. Pelotas é de 1969 (onde até ja havia uma universidade federal rural e instituições isoladas outras) e Santa Maria de 1960. Alás, se lembro bem o curso de medicina foi criado aqui com a lista de espera da UFRGS, gente que havia sido aprovada mas não no numero de vagas existente. Na formatura desta turma em 1960 o orador foi o Veppo. Resumo da opera é que muitos boatos não sobrevivem a uma verificação superficial.

  2. Boatos teimam também em virar historia. Na aldeia não faltam exemplos. Rede Ferroviaria do RS não começou como rede, começou com uma serie de linhas isoladas. Em 1898 havia uma que ligava Taquari a São Gabriel (passando por Cacequi). Outra ligava Passo Fundo a Santa Maria e fazia conexão com a primeira citada aqui na aldeia. Haviam outras linhas isoladas, Itaqui-Quarai, Bagé-Rio Grande passando por Pelotas. Para fazer a linha POA-Uruguaiana foi só prolongar de Taquari ate a linha que vinha de Novo Hamburgo e de Cacequi até Uruguaiana. Lembrando que o Porto Velho de Rio Grande é de 1872 e o Porto Novo é de 1915. Lá por 1900 ligaram Cacequi a Bagé. Mais ou menos nesta epoca faziam transbordo na fronteira e o porto de Montevideo era muito utilizado.

  3. Conto de Imembuy não tem nada de extraordinário. Lembra a historia de Custer que foi derrotado por uma confederação de tribos e coabitava com uma cheyenne. Lembra temas da mitologia grega, o estranho vindo e envolvendo-se com uma princesa (Jasão e Medéia, Teseu e Ariadne). Personagem como lenda, também não tem nada de excepcional. Vide Rei Artur, Robin Hood, etc. Lembra ‘O herói: um estudo na tradição, mito e drama’ de Fitzroy Raglan. ‘Compete-nos’ nada. É um assunto nichado. É o rumo natural das coisas. Todo artista sabe que a decadencia faz parte do caminho, não é privilegio.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo