Corra e olhe o céu – por Bianca Zasso
A colunista e ‘Marte Um’, com a direção do mineiro Gabriel Martins
A produtora mineira Filmes de Plástico nasceu de um grupo de amigos apaixonados por fazer cinema e mostrar ao mundo o seu lugar nesse planeta. O seu bairro, o seu sotaque, a sua cidade. Responsáveis por pérolas do recente cinema brasileiro como Temporada, de André Novais, agora eles lançam Marte Um, primeiro trabalho solo de Gabriel Martins como diretor.
Premiada no recém acabado Festival de Gramado com os Kikitos de Melhor Filme pelo Júri Popular, Melhor Roteiro, Melhor Trilha Musical e ainda um Prêmio Especial do Júri, a produção integrou a seleção de uma edição especial do festival gaúcho, que comemorou seus 50 anos de existência. Como coincidências não existem, Marte Um também é um marco do nosso cinema não apenas por sua qualidade técnica e artística, mas por ousar falar de afeto num país que se encontra no meio de uma guerra (quase) velada.
Marte Um tem como centro o sonho do adolescente Deivinho (o talentoso estreante Cícero Lucas) de participar da missão que dá nome ao filme e que pretende colonizar o planeta Marte no ano de 2030. O que parece uma proposta de ficção científica é apresentado como um retrato brasileiro permeado por uma nuvem política discreta, mas nem por isso menos importante para a trama.
Ao redor do aspirante a astrofísico Deivinho circulam sua irmã Eunice (Camilla Damião), sua mãe Tércia (Rejane Faria) e seu pai Wellington (Carlos Francisco), cada um com seus sonhos e medos diante de um Brasil que se transforma. Logo na primeira cena, ouvimos uma notícia no rádio que anuncia a eleição de Jair Bolsonaro como presidente do Brasil. A política errônea e violenta que iria imperar nos próximos quatro anos aparece em Marte Um nos detalhes.
Ao dar atenção com equilíbrio para cada um dos personagens centrais do filme, que se unem pelo laço do sonho de conquistar o espaço de Deivinho, Gabriel Martins consolida seu estilo de direção naturalista e seus diálogos espontâneos. Nas inseguranças de Eunice para contar a família sobre seu relacionamento com Joana (Ana Hilário), sabendo dos preconceitos e do machismo de seu pai, o filme confronta a homofobia com amor ao filmar o sexo entre duas mulheres com elegância e naturalidade.
Vale destacar o trauma de Tércia ao participar de uma pegadinha de TV que envolve uma bomba. O que é levado como exagero pelos filhos e pelo marido, simboliza para ela a explosão de sua zona de conforto. A filha saiu de casa, o marido insiste em transformar o filho em craque de futebol e seus trabalhos como diarista diminuem a cada dia.
É a crise do Brasil sufocando o peito de Tércia e também do espectador. O próprio desejo de Deivinho de ajudar a colonizar Marte parece uma metáfora. Fugir da pressão do pai para que ele se torne jogador de futebol profissional parece algo que ele só conseguirá resolver se for viver em outro planeta.
Marte Um segue o estilo de No Coração do Mundo, trabalho anterior de Martins, que já deixava claro seu interesse por cotidianos simples, mas nunca simplórios. Ao filmar com tons melancólicos as rotinas que envolvem pegar ônibus lotado ou jogar buraco no domingo à noite na mesa da sala de jantar, o cineasta comprova que a vida tem magia mesmo quando parece banal e que sonhar e trocar afeto é o que nos mantém vivos diante de tantos perrengues.
Os corpos negros ganham uma luz lindíssima em Marte Um, assinada pelo ótimo diretor de fotografia Leonardo Feliciano, e a periferia é o retrato do aconchego e cenário para as melhores cenas do filme. É no churrasco improvisado na laje que a alegria é genuína, enquanto que o condomínio de luxo onde Wellington trabalha como zelador é sempre um marasmo sem fim, apesar da piscina tentadora e dos moradores famosos (o jogador Sorín faz uma participação bem interessante no longa).
Há um hábito nada saudável reforçado por muitas pessoas que afirma que o cinema brasileiro ou explora a pobreza e a violência das regiões periféricas ou idealiza os locais paradisíacos do país, criando um mundo mágico para atrair turistas estrangeiros.
Quem acompanha os festivais de cinema sabe que o nosso cinema é muito mais do que isso e cada vez mais diretores e propostas novas estão surgindo, cheias de criatividade e talento. Porém, nem todas chegam ao grande público. Marte Um opta por um Brasil real, onde há violência sim, mas ela não é o centro da história. Com uma linguagem acessível e um ritmo equilibrado, o resultado pode agradar tanto o espectador comum quanto os cinéfilos que se deleitam com propostas visuais nem tão óbvias.
Escolher uma família com um adolescente que passa suas tardes sonhando em conhecer o ídolo Neil deGrasse Tyson (um astrofísico negro, o que representa muito no contexto do filme) e tem medo de descer uma rua de bicicleta é mais que ousado, é uma arma contra quem está sempre falando mal da nossa sétima arte sem sequer prestigiá-la ou tentar compreendê-la.
A vida vivida, a eterna repetição dos dias do trabalhador brasileiro, pode ser arte. O afeto, que aparece em diferentes formatos e intensidades em Marte Um, é um bálsamo diante de tantas notícias tristes e da fúria que tomou conta deste nosso canto no mundo nos últimos anos. Deivinho quer ir para Marte e sua família também parece interessada em começar do zero, bem longe do Brasil de hoje.
Num dos momentos mais ternos do longa-metragem, Tércia e Deivinho vasculham as coisas do avô do menino, já falecido. Relógios, fotografias, documentos e muitas histórias. Mãe e filho trocam sorrisos com uma intimidade emocionante. Sem arroubos cênicos, somos tomados por aquela sensação de que são esses pequenos contatos, essas trocas comuns da vida que realmente marcam.
Cartola cantava para a gente correr e olhar o céu. Deivinho quer construir seu telescópio para fazer isso como acha que é o certo. Seu desejo irá se realizar? Talvez isso é o que menos importa diante das estrelas que brilham em toda a cidade, não importando o tamanho das casas onde se vive. Há esperança refletida nas lentes dos óculos do pequeno Deivinho.
Marte Um
Direção: Gabriel Martins
Ano: 2022
Em cartaz nos cinemas
(*) Bianca Zasso, nascida em 1987, em Santa Maria, é jornalista e especialista em cinema pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Cinéfila desde a infância, começou a atuar na pesquisa em 2009. Habitualmente, seus textos podem ser encontrados aqui às quintas-feiras.
Observação do Editor: as imagens que ilustram este texto são de Divulgação.
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