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O memoricídio – por Elen Biguelini

Há pouco tempo nos deparamos com este termo em uma de nossas leituras sobre autoria feminina. Segundo Constância Lima Duarte, que nos apresentou o conceito, ele teria surgido de um m texto de 2010 de Fernando Baez, historiador venezuelano tratando daquilo que foi perdido com a colonização.
Ainda que o termo tenha sido cunhado para refletir as perdas culturais indígeno-sul-americanas, podemos transpor facilmente tanto a palavra em si quanto se significado para a história das mulheres, em especial, a história das mulheres que escreveram. Isto porquê o memoricídio nada mais é do que um apagamento consciente de uma cultura memorial. E foi exatamente isto que aconteceu com as autoras ao longo dos séculos.

Um exemplo muito bom para compreender esta frase seria Mary Wollstonecraft, autora inglesa que escreveu “A Vindications of the Rights of Women”, em 1792. Sua obra foi vastamente lida durante a vida ada autora, mas durante o século XIX seu nome e seu texto desapareceram. Isto porque, ao lançar uma biografia de sua esposa, o marido de Mary Wollstonecraft, William Godwin, relatou que ela havia tido uma filha fora do casamento, o que era inadmissível para a sociedade inglesa oitocentista. A memória de sua figura foi como que apagada da história.

Até mesmo algumas feministas de primeira onda (sufragistas) não mencionavam sua obra, ainda que ela corroborasse em diversos pontos com seus ideais.

O nome de uma mulher relacionado ao de Wollstonecraft era rebaixado. Razão pela qual autoras como Jane Austen, cuja influencia de obra wollstonecraftiana é clara, não poderia em momento algum relatar que era esta uma de suas influencias, sendo que Austen não tinha temores em citar outras autoras mulheres em suas obras: mencionou desde Mrs. Radcliffe, autora gótica sua contemporânea, até diversos românticos setecentistas e a dramaturga Elizabeth Inchbald, com “Lover’s Vows”. Esta última chega a ter trechos interpretados por seus personagens, em “Mansfield Park”, apesar da peça em si ser vista com maus olhos pela sociedade britânica do período. Ainda assim, Austen não poderia em momento algum citar a ‘desgraçada’ Wollstonecraft.

A memória da autora de ‘Vindications’ foi recuperada ao longo dos séculos, mas não se pode ignorar o que a falta de memória sobre ela significou para a autoria feminina.

Virginia Woolf escreve em seu “Um teto todo seu” sobre a falta de autoras que possam ser usadas como forma de criar precedentes a outras autoras. Ao contrario dos homens, que poderiam se inspirar em outros homens, ou mesmo opô-los, as mulheres não tinham bases solidas para um cânone.
Mas Woolf estava errada. Não é porque ela desconhecia mulheres que escreviam que elas não o faziam. Pelo contrário, são tantos os exemplos de escritoras cuja memória foi perdida ao longo dos séculos.
O memoricídio na autoria feminina persistiu por muitos séculos.

Cabe a nós, em pleno século XXI, resgatar estas memórias, estes conhecimentos, estas autoras. E é isto que pretendemos com nossos textos semanais, assim como é o que deseja Constância Lima Duarte na obra que nos apresentou o termo: “Memorial do Memoricídio”: escritoras brasileiras esquecidas pela história”, organizado por Duarte em 2022.

(*) Elen Biguelini é doutora em História (Universidade de Coimbra, 2017) e Mestre em Estudos Feministas (Universidade de Coimbra, 2012), tendo como foco a pesquisa na história das mulheres e da autoria feminina durante o século XIX. Ela escreve semanalmente aos domingos, no Site.

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