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Fé demais – por Orlando Fonseca

Iniciada a propaganda eleitoral, teve início também um festival de estratégias publicitárias de fazer corar (se não gargalhar) até mesmo redatores humoristas pelo país. Uma das pérolas que têm sido repetidas tem-me feito pensar muito por estes dias, e me ocorre a indagação cósmica: onde incluir Deus no executivo municipal? Eu disse “municipal” e não “universal”, onde Ele estaria mais bem situado desde os tempos imemoriais. Pois estão aí, no horário eleitoral gratuito (por aí já se vê que a gratuidade pode não ser uma virtude) os que se apresentam com o slogan: “Será Deus no comando”! Sou do tempo em que distribuir santinho era o máximo permitido em termos de profanação.

Na jornada humana sobre este planetinha perdido na imensidão do cosmos, Ele que foi entronizado em nossa história, por volta de 1100 a.C. (aliás, sigla que tem a ver com o seu dileto Filho, e como Ele também divino) tem sido o deus único do pedaço. Depois de uma renhida disputa com os representantes do politeísmo, tornou-se o Todo Poderoso do segmento monoteísta, para pelo menos três religiões que se firmaram no ocidente, o judaísmo, o islamismo e o cristianismo. Este último, o que vicejou por estas plagas, onde no pleito deste ano querem reduzi-lo à gestão de municípios Brasil afora.

Na minha humilde e ingênua concepção sobre o universo e seus encantos (Tim Maia já achava que ele estava em desencanto), Deus tem mais o que fazer cuidando de galáxias, do que baixar até a Terra para dar um jeito nos buracos na rua, nas filas do PA, na iluminação pública. Iluminação é sem dúvida da sua esfera de ação, mas, eu diria, que com propósitos muito mais elevados. E aí me ocorre que, para esta gente que pretende falar em seu nome, como se Ele tivesse estado em seu comitê discutindo as pautas para o futuro plano de governo, está faltando justamente iluminação. Mas não tomo o santo nome em vão para afirmar isso, pois reduzo o conceito ao seu limite, digamos, mundano, terreno e racional. Falo das luzes que nos deram a concepção de Estado, de sociedade, de democracia moderna: o Iluminismo. A partir da revolução francesa, o pensamento liberal e o socialismo das lutas proletárias ganharam o cenário político no Ocidente.

Depois de longos embates intelectuais e ideológicos, muitos pensadores chegaram à conclusão de que era melhor deixar o Grande Arquiteto do Universo em seu posto, e pensar o mundo à nossa volta, tratando das condições e do destino dos humanos com a ferramenta que Ele nos legou: a razão. Para questionar, para observar com atenção e método, formular hipóteses, tirar conclusões, testar e aplicar. Seja em termos de teoria, seja em termos de prática, no que se convencionou chamar “ciência”. Não se pense que esses pensadores filósofos ou cientistas eram incréus, querendo viver à toa. Não, a grande maioria era religioso, crente, e não deixou de elaborar a grande enciclopédia que conduziu a sociedade ao que conhecemos hoje. Daí vêm a formação dos estados-nação, as administrações públicas, o sistema jurídico, as revoluções industriais, as revoluções operárias e corporativas, a medicina, as artes, a vida urbana, enfim. Não faria mal aos postulantes intrépidos, darem uma passada de olhos nos livros de história. Teriam melhor oportunidade para qualificar as suas propostas, em vez de anunciarem, sem o menor pejo, que Deus estará no comando, para que eles cumpram um mandato mundano em prefeituras brasileiras, fazendo-se sabe lá o quê.

Desculpe o trocadilho, caro leitor, mas fé demais, até o santo desconfia. Os eleitores deveriam também colocar mais atenção nas propostas para o futuro próximo que esses candidatos estão anunciando, porque Deus já tem mais com se preocupar para além da esfera municipal e na plenitude cósmica da eternidade. Santinho, só o distribuído por cabos eleitorais, o qual por ser de papel logo dá de cara com o chão. Não caia nessa.

(*) Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela “Da noite para o dia”.

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15 Comentários

  1. Resumo da opera. Atraso do primeiro ao quinto e invertido. Campanhas de ‘conscientização’ não funcionam porque dependem de quem esta assistindo, geralmente pouca gente que não precisa ser ‘convertida’. Filosofia não parou no século XIX. Alas, discute-se mais filosofica ultimamente na ‘ponta’ da fisica e da ciencia da computação do que nas outras disciplinas. Politica, por vivermos em tempos de transição, tem dificuldades em tentar explicar o que acontece. Por falta de teorias recentes (ou desconhecimento, vide Manuel Castells) tentam utilizar as antigas a modo miguelão como se nada tivesse mudado. Os recicladores mais conhecidos la fora são o Slavoj Žižek e o Yanis Varoufakis. Conclusão é que cada um vota como lhe apetece.

  2. ‘Não caia nessa.’ Vermelhos na sua bolha irão concordar. Maioria vai ignorar, não vão tomar conhecimento do ‘conselho’ desnecessário. Sim, porque gado, metaforicamente falando, é só Red Angus. Vide eleição em SP. Parte dos crentes vai para Nunes do Cavalão e parte para Marçal. Até o Dimas Vailacraia ficou brabo.

  3. ‘Desculpe o trocadilho, caro leitor, mas fé demais, até o santo desconfia.’ Pois então. Alguns ‘cientistas politicos’ vermelhos dizem que é provocação. Ideologia de esquerda é ou não religião? Sim, porque o ‘socialismo cientifico’ (e seus derivados) deu errado (ou seja, teve experimentação) em todo lugar que foi implantado. URSS, Cuba, China, etc. Bolivarianismo, o ‘socialismo do século XXI’, também deu errado. Donde sai o ‘mas desta vez’, ‘não foi realmente socialismo’, desculpas de praxe. Muito mais a ver com fé do que com evidencias.

  4. Ainda história. Nazismo. Surgiu de ideias surgidas na Inglaterra (se lembro bem) que circularam e se modificaram. Algo como ‘se posso cruzar um touro com caracteristicas desejadas com uma vaca com peculiaridades idem para obter terneiros(as) melhores por que não posso fazer o mesmo com humanos?’. Programa Lebensborn. Mulheres solteiras tinha relações com ‘arianos’ e as crianças eram entregadas para adoção, preferencialmente familias da SS. Absurdos não param por ai, abortos seletivos, eutanasia, sequestro, etc.

  5. Ainda historia. Trofim Lysenko, biologo sovietico, adotando o lamarquismo atrasou a União. Nada de genética e nem agricultura baseada em ciencia.

  6. ‘Não faria mal aos postulantes intrépidos, darem uma passada de olhos nos livros de história’. Semantica. Marx e Engels criaram o ‘socialismo cientifico’. Resultou em milhões de mortes. Nesta hora o vermelho fala ‘mas o Capitalismo também mata muita gente’. Dois detalhes, o primeiro é que mata por omissão (daí a importancia do Estado). Segundo, capitalismo é um fenomeno emergente, a teoria para tentar explicar surgiu depois.

  7. ‘Seja em termos de teoria, seja em termos de prática, no que se convencionou chamar “ciência”.’ Pegadinha. Do Iluminismo para cá o conceito de ‘razão’ (e sua aplicação) e a ciencia mudaram muito.

  8. Obrigado. ‘Para questionar, para observar com atenção e método, formular hipóteses, tirar conclusões, testar e aplicar. Seja em termos de teoria, seja em termos de prática, no que se convencionou chamar “ciência”.’ Humanas foram para o ralo. Não tem como fazer experimentos em ‘ciencias’ humanas. No maximo levantamentos estatisticos. Alas, classificação do direito academicamente é ‘ciencias sociais aplicadas’, mas os(as) causidicos(as) usam um monte de mimimi para afirmar que o direito é ciencia e tem ‘tecnica’. O que se ve é o que a casa tem para oferecer.

  9. ‘[…] muitos pensadores chegaram à conclusão de que era melhor deixar o Grande Arquiteto do Universo em seu posto, e pensar o mundo à nossa volta, tratando das condições e do destino dos humanos com a ferramenta que Ele nos legou: a razão.’ Muitos pensadores podem pensar o que quiserem, não vincula o que os outros pensam ou deixam de pensar. Alas, a filosofia de duzentos anos atrás é inviabilizada pelas descobertas mais recentes da neurosciencia e das ditas ciencias comportamentais. Vide Nobel de Economia de 2002.

  10. ‘A partir da revolução francesa, o pensamento liberal e o socialismo das lutas proletárias ganharam o cenário político no Ocidente.’ Muitos historiadores usam a Revolução Francesa como marca do fim do Iluminismo. Ala, o socialismo tem mais a ver com o Despotismo Esclarecido que outra coisa.

  11. ‘Deus tem mais o que fazer cuidando de galáxias, do que baixar até a Terra para dar um jeito nos buracos na rua, nas filas do PA, na iluminação pública.’ Talvez só apelando para Ele. Porque toda eleição é um teatro de má qualidade, muitas promessas e problemas se perpetuam.

  12. ‘[…] onde incluir Deus no executivo municipal?’ No Reino Unido não são poucas as cidades com prefeitos muçulmanos.

  13. ‘[…] um festival de estratégias publicitárias de fazer corar (se não gargalhar) até mesmo redatores humoristas pelo país.’ Como de costume. Humoristas foram relegados ao stand up, não suportaram o policiamento do politicamente correto. Mesmo assim promotores(as) sem muito o que fazer (quase não existem crimes no pais) volta e meia resolvem processar profissionais que trabalham em teatros/bares contando piadas onde se paga para entrar.

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