A casinha na árvore: memórias de uma travessia docente – por Amarildo Luiz Trevisan
“Ali, entre galhos e tábuas, a educação aparecia como brincadeira séria...”

Comecei a me aventurar no campo das políticas educacionais quando o país respirava os ventos da redemocratização. A Constituição de 1988 havia semeado novas esperanças e, na educação, brotavam palavras que soavam como promessa: autonomia crítica, gestão democrática, participação. Inspirado por Jürgen Habermas, que me servia de guia teórico e ético, sentia que minha docência encontrava um chão firme no diálogo e na razão comunicativa. Conselhos escolares, círculos de cultura, a voz de Paulo Freire ecoando nos corredores: tudo parecia anunciar um futuro promissor.
Mas a travessia nunca é linear. Quando propusemos uma reforma curricular para abrir o doutorado em Educação, a linha de pesquisa que me abrigava foi extinta. Seguiu-se uma dispersão de colegas, cada qual buscando outro rumo, como sementes levadas para outras searas. Migrei, não sem resistência, para a linha de Formação de Professores. Ali minhas raízes filosóficas, acostumadas à reflexão normativa, estranharam o solo das pesquisas empíricas. Vieram as perguntas, desconfiadas: “Onde está o professor real em tuas pesquisas?”
Foi essa interrogação que me fez voltar às escolas. Descobri que o professor real estava ali, no cotidiano que dói: um sujeito que sofre violência não apenas por salários baixos ou falta de reconhecimento, mas na própria dignidade, desautorizado diante da turma, alvo de agressões verbais, simbólicas e físicas. Essa constatação revelou uma ferida aberta. O Brasil, vergonhosamente, despontava entre os países com mais violência contra docentes.
A dor, no entanto, virou aprendizado. Pesquisar não era acumular estatísticas, mas escutar o grito do real e buscar saídas coletivas. Descobri que falar de sustentabilidade na escola não se restringia à ecologia natural. Era também reencontro com a dimensão simbólica do cuidado, da pertença e da reciprocidade. Aproximar a educação da natureza podia ser uma forma de enfrentar a violência, devolvendo sentido ao convívio escolar.
Foi assim que retomei a palavra ecopráxis, já nomeada por outros, mas que para mim se tornou um modo íntimo de habitar o mundo. Uma práxis situada, que não age sobre, mas com o mundo, entrelaçando liberdade e limites, criando brechas para futuros possíveis. Essa perspectiva encontrou eco em Latour, que fala de Gaia como organismo vivo. Educar, então, passou a ser aprender a compor com Gaia, a reconhecer que as raízes da cultura se entrelaçam às raízes da Terra.

Até nos brinquedos escolares a ecopráxis se deixa entrever. No pátio da Escola Nossa Senhora das Neves, em Natal, encontrei uma casinha na árvore que parecia condensar, em madeira, sombra e imaginação, tudo o que penso como prática pedagógica enraizada no cuidado. Ali, entre galhos e tábuas, a educação aparecia como brincadeira séria: aprender era dialogar com o ambiente que nos acolhe.
Aquela casinha tornou-se para mim uma imagem dialética, no sentido de Walter Benjamin: um lugar em que memória, infância e futuro se entrelaçam, condensando tensões sociais e culturais em forma visível. Ela guardava a promessa de uma pedagogia que não se aparta da vida, mas que a reinventa.

Ao olhar para trás, compreendo que a travessia entre políticas, violência escolar e sustentabilidade me conduziu a uma convicção radical: a ecopráxis é mais do que conceito, é modo de existir, ensinar e habitar o mundo. É gesto de cuidado que reconhece a interdependência entre seres humanos e todas as formas de vida. Talvez, no fundo, toda a minha pesquisa possa ser resumida naquela casinha na árvore. Porque nela aprendi que a escola só se reinventa quando devolve dignidade a quem ensina e aprende, transformando a vida comum em raiz de futuro.
(*) Amarildo Luiz Trevisan é licenciado em Filosofia, mestre em Filosofia (UFSM), doutor em Educação (UFRGS) e pós-doutor em Humanidades pela Universidade Carlos III de Madri. Tem formação teológica pela Diocese de Goiás. É Professor Titular aposentado da UFSM e atua como Professor Visitante no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRN. Publicou diversos trabalhos, entre eles o livro Terapia de Atlas: Filosofia da educação no contemporâneo (EDUCS, 2020). Ele escreve no site aos sábados.






ATENÇÃO
1) Sua opinião é importante. Opine! Mas, atenção: respeite as opiniões dos outros, quaisquer que sejam.
2) Fique no tema proposto pelo post, e argumente em torno dele.
3) Ofensas são terminantemente proibidas. Inclusive em relação aos autores do texto comentado, o que inclui o editor.
4) Não se utilize de letras maiúsculas (CAIXA ALTA). No mundo virtual, isso é grito. E grito não é argumento. Nunca.
5) Não esqueça: você tem responsabilidade legal pelo que escrever. Mesmo anônimo (o que o editor aceita), seu IP é identificado. E, portanto, uma ordem JUDICIAL pode obrigar o editor a divulgá-lo. Assim, comentários considerados inadequados serão vetados.
OBSERVAÇÃO FINAL:
A CP & S Comunicações Ltda é a proprietária do site. É uma empresa privada. Não é, portanto, concessão pública e, assim, tem direito legal e absoluto para aceitar ou rejeitar comentários.