O poder da escuta – por Bianca Zasso
Ferramentas de comunicação existem aos montes. Acredito que nem nos tempos em que as cartas eram a principal forma de interação entre pessoas que estavam distante se escreveu tanto. São dezenas de mensagens trocadas diariamente em aplicativos e o celular é companheiro indispensável. Só que ainda são muitos os silêncios e as palavras vazias.
Mesmo com a possibilidade de conversar a qualquer hora, a falta de comunicação e a solidão ainda se fazem presentes. O carioca Felipe Sholl já havia mostrado sua sensibilidade como roteirista no ótimo Histórias que Só Existem Quando Lembradas, dirigido por Júlia Murat em 2011 e faz sua estreia como diretor de longas-metragens acentuando sua predileção por temas delicados e controversos em Fala Comigo.
Premiado no Festival do Rio no ano passado, o filme já se apresenta ao espectador sem medo da ousadia ao mostrar o adolescente Diogo se masturbando enquanto escuta a voz das pacientes de sua mãe, a psiquiatra Clarice. O que na superfície parece apenas uma fase da descoberta da sexualidade logo se mostra quase uma obsessão. Diogo liga para as pacientes e guarda o esperma em uma folha, catalogada com nome, idade e nota.
Num jogo de sedução do espectador, Sholl constrói um início que dá a entender que é esse “hábito” de Diogo o tema central do filme, para na sequência seguinte iniciar a apresentação dos outros personagens. Conhecemos Ângela, a paciente com a nota mais alta na lista de Diogo, em plena crise depressiva após se separar do marido. Durante a ligação, ela pensa estar falando com o homem que ainda ama e clama por uma resposta.
O olhar de Diogo do outro lado da linha denuncia que existe algo em comum entre os dois: a falta de diálogo. Isso porque basta uma cena para detectarmos que Clarice pode até ser uma terapeuta dedicada, mas pouco escuta seus filhos (além de Diogo, ela também tem uma menina mais nova, Mari), que acabam encontrando conforto um no outro.
É com quase meia hora de filme que Fala Comigo une seus protagonistas. O relacionamento entre Ângela e Diogo inicia de forma insólita e tem uma função bem distante de inserir romance na trama. Descobrimos na interação entre os dois as falhas dos relacionamentos anteriores de Ângela, a busca de amor materno de Diogo e suas dúvidas quando a sexualidade. Vale destacar aqui o envolvimento breve dele com o melhor amigo, que o coloca em dúvida.
Apesar de não aprofundar essa questão, Fala Comigo deixa no ar a ideia de que o desejo de Diogo ainda está em construção, apesar da boa química sexual com Ângela. As reticências dos acontecimentos de Fala Comigo, ao contrário do que acontece em outros roteiros, não são falhas, mas interrogações que perpetuam na cabeça de quem assiste por horas. Fazer refletir é o maior dos objetivos do filme.
A fotografia realista, assinada por Leo Bittencourt, ajuda a criar intimidade com os personagens, mas a força motora do longa é mesmo seu elenco. Tom Karabachian constrói um Diogo cheio de nuances e sua interpretação só cresce quando está ao lado de Karina Teles, que já havia chamado a atenção em Que horas ela volta? de Anna Muylaert. Denise Fraga demonstra maturidade com sua Clarice, uma mulher ao mesmo tempo decidida e confusa, encurralada em um casamento infeliz que acaba atrapalhando sua relação com os filhos. E vale um olhar mais atencioso com Anita Ferraz, a Mari. A naturalidade com que ela coloca suas falas é pouco vista até em atores experientes.
Fala Comigo tem humanidade, com todas as complexidades que isso envolve e só funciona por ter investido em atores que não se dão por satisfeitos apenas em decorar suas falas e cumprir marcações. Eles vivenciam cada passo, cada palavra, cada silêncio.
Fala Comigo é um oásis em tempos como os que estamos vivendo, onde o conservadorismo surge vagarosamente e, em pequenas doses, pratica suas censuras. Tratar de assuntos ainda ditos controversos, como o relacionamento entre uma mulher mais velha e um adolescente, é ousadia necessária. No caso de Sholl, uniu-se esta ousadia a um olhar atento e carinhoso, que não esquece de abordar a questão do abuso, já que envolve um menor de idade. A atmosfera é construída de forma a tornar o ambiente próximo de quem assiste, como se estivéssemos na poltrona ao lado, observando a família calada durante o jantar ou as fantasias envolvendo o próprio gozo que Diogo realiza com Ângela.
Se há um final em aberto um pouco abrupto, destoando do passeio sem pressa da câmera presente ao longo do filme, pode ser mais um ponto de real dentro da ficção. As coisas surgem e somem de nossas vidas sem muita explicação. Cabe a quem está diante da tela escolher o porquê.
Fala Comigo
Ano: 2016
Direção: Felipe Sholl
Disponível em DVD e na plataforma Netflix
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