Claudemir Pereira

CRÔNICA. Orlando Fonsenca, covid-19 e a esperança

Noé e a pandemia

Por Orlando Fonseca*

A coisa está tão esquisita, que é difícil encontrar similaridades para tecer comentários. A imaginação, no entanto, sofre poucos efeitos com a disseminação do Coronavírus. Vamos traçar um paralelo entre a narrativa bíblica e a situação do mundo atual. Volto à arca de Noé.

A ordem divina era para construir um barco, o que consumiu 120 anos da vida do patriarca Noé e sua família. Bem, essa parte já nos escapou, não nos preparamos para o que estamos passando. Noé nunca tinha visto chuva, portanto um dilúvio era coisa impensável. Baseado na fé, foi em frente. Embora já tenhamos enfrentado outras pandemias como a gripe espanhola, Aids e H1N1, não nos preparamos para um microrganismo letal, capaz de atingir o planeta inteiro, feito um tsunami transmitido por um dilúvio de saliva. Sem uma arca poderosa, a ordem para a salvação geral está no uso de máscara, higiene das mãos e álcool-gel em abundância. Noé e a família, mais a bicharada toda, se trancaram no imenso navio e ficaram isolados da massa ignara que tirava onda deles. Antes de aparecerem as nuvens, a galera achava que o Velho e a sua turma tinham pirado. Ao começar a caírem os primeiros pingos, o pessoal ria dizendo que era só uma chuvinha. Mas Noé ficou firme, naquela situação que lhe garantia o único meio de não se contaminar com a desconfiança popular: manter o distanciamento social. Aí veio a chuva para valer, e não foram apenas dois ou três dias de temporal. O toró durou quarenta dias e quarenta noites, para não deixar dúvida de que se tratava de um dilúvio enviado pelas altas potestades celestes. No quadro meteorológico da pandemia atual, o tempo ainda está nublado e sujeito a pancadas esparsas, mas vigorosas. Segundo especialistas, aqui no Brasil não ultrapassamos ainda a primeira onda. Mais do que os perigos causados pela Covid-19, o que causa estragos na cabeça de multidões, em nosso país, é a ignorância.

Temos os relatos do que aconteceu em outros países. Há um ciclo da contaminação, o qual exige de saída que o pessoal se mantenha no interior da Arca, para que o vírus não se espalhe de uma vez em larga escala; depois é preciso adotar protocolos sanitários rígidos e um convívio solidário, para não contaminar os mais vulneráveis. E esperar que a chuva passe, são quarenta dias – daí vem a noção de quarentena – e não há como apressar a passagem da pandemia, que vem em ondas, e a segunda, como já disse, ainda nem chegou.

No quadragésimo primeiro dia, a turma dentro da arca notou que a chuva cessara. O comandante Noé, entretanto, se manteve inflexível, mesmo diante da insistência dos mais apressadinhos em sair, pois cansados daquela rotina estressante do confinamento, queriam ganhar o mundo, voltar à normalidade. Contudo, Noé sabia que o mundo havido antes não existia mais. Não sabia sequer que mundo seria.

Era preciso deixar que a água escoasse e o chão estivesse firme outra vez, por onde teriam de dar os primeiros passos em uma nova realidade a ser construída. Sem uma vacina, estamos ainda na mesma situação de avaliar os estragos causados pelo Coronavírus, e manter a vigilância. Noé mandou uma pomba para avaliar as condições externas. Se a ave não retornasse era porque já podiam sair. Ela voltou com uma folha verde no bico; eles entenderam o recado: havia esperança, mas era tempo de permanecer ainda em isolamento. Mais ou menos como nós hoje, observando que os testes das vacinas estão a indicar possíveis salvaguardas, mas ainda não representam o chão livre das águas dessa pandemia. Estamos aguardando, por ora, o que significou a viagem do corvo, o qual voou fora da arca e não retornou – devia ter voltado para buscar a parceira, mas isso é outra história.

Vai passar, como temos repetido, uns aos outros, em forma de alento. Chegará o dia em que veremos, como Noé e família, o arco-íris celeste, dizendo a todos os que puderem contemplá-lo que valeu a espera por dias melhores. Muitos que estão apressando as coisas, agora, não conhecerão as cores desses novos tempos.

*Orlando Fonseca é professor titular da UFSM – aposentado, Doutor em Teoria da Literatura e Mestre em Literatura Brasileira. Foi Secretário de Cultura na Prefeitura de Santa Maria e Pró-Reitor de Graduação da UFSM. Escritor, tem vários livros publicados e prêmios literários, entre eles o Adolfo Aizen, da União Brasileira de Escritores, pela novela Da noite para o dia.

Observação do editor: Crédito da imagem: Prawny/Pixabay

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4 Comentários

  1. Ignorância. Existe um documentário no Netflix, ‘Pandemia’ acho que é o nome. No mesmo aparece um sujeito que se define ‘biohacker’. Ph.D. (doutorado dele foi nos EUA), já trabalhou para a NASA. Atualmente (é so olhar as redes sociais do sujeito) trabalha na garagem da própria casa numa vacina ‘caseira’ para a Covid. Como se classifica ele na escala de ‘ignorancia’?

  2. Problema das outras pandemias. Circunscritas a poucos lugares. Sars e Mers atingiram pouca gente, logo muita gente acreditou que os fatos se repetiriam. a transmissão de pessoa para pessoa seria mais difícil. Gripe é mais conhecida (medo da segunda onda vem da epidemia de espanhola). HIV só virou problema (e começou a ser estudado) a partir da década de 80 da década passada. Prevenção contra todos os prováveis riscos nunca acontece, principalmente contra os que não se sabe que existem.

  3. Problema da Arca. Biblia tem o aspecto religioso, mas também existe o aspecto de registro da tradição oral. Ocorreram diversas inundações na região do Tigre e Eufrates, o ‘diluvio’ poderia ser uma delas. Ou poderia ser a ‘inundação’ do Mar Negro, evento relacionado com o final a ultima era do gelo, uns 12 mil anos atrás.
    Alás, os tupi tinham a lenda de Tamandaré e relatos semelhantes ocorrem em diversas culturas.

  4. Problema é que comparar com outros países não funciona. Jornalistas, aquela profissão que não é famosa pela capacidade cognitiva dos integrantes, começaram a procurar ‘exemplos’, ‘medidas corretas’, desde o começo da pandemia. Pode-se comparar um abacaxi com um fusca e concluir que são diferentes, não mais do que isto. India (como prognosticado) depois de uma quarentena (administrar um pais com população bilionária, entre outras coisas, não é nada fácil) relaxou as medidas. O número de casos que era relativamente baixo disparou. Atualmente tem algo como 400 mil casos a mais que o Brasil e pouco mais da metade do número de óbitos. O que está errado? Estão fazendo algo diferente dos outros países? Não. População é mais jovem. Expectativa de vida é perto de 69 anos. As pessoas não morrem de Covid porque já morreram de outra coisa antes.
    Canada, Nova Zelândia, Austrália? Densidade demográfica diferente, população relativamente jovem. Suécia? População mais velha e muitas ‘casas de repouso’. Juntando com a estrutura diferente e fica difícil uma comparação.

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